29 de abril de 2011

As Ruínas de Mozos

O cineasta Manuel Mozos filmou edifícios em decadência e ofereceu-lhes histórias. Nesse cruzamento de imagens e de textos fala-se, em "Ruínas", de um país mais de misérias do que de grandezas. Isto é Portugal. "De grandes esperanças mas, ao mesmo tempo, de uma certa mesquinhez, uma coisa de remediado". Belíssimo.

Há quanto tempo ninguém andava por aqui? Quem se lembra ainda do que aqui se passou?
Manuel Mozos tem por hábito ir anotando num caderno coisas destas: lugares, uma notícia que leu numa revista, uma referência de um texto. O que queria fazer em "Ruínas" - o filme, uma produção de O Som e a Fúria, que estreou esta semana - era cruzar essas coisas. Queria filmar os espaços vazios, sim, mas queria povoá-los, dar-lhes vozes, sons, fazê-los habitar por fantasmas que, se calhar, não eram os fantasmas desses espaços - eram outros, que obrigaram os primeiros a chegar-se para o lado e a deixá-los instalar-se também.

"Ruínas" é uma sucessão de imagens de espaços que o país deixou para trás, que esqueceu, mas que não desapareceram. Muitos permanecem, de pé, numa dignidade silenciosa, abandonados mas não vencidos. Ninguém passa por eles, mas eles ainda ali estão.
"O que me interessa, quer nos espaços quer nos outros materiais que utilizo no filme, é serem coisas que acho interessantes e que se diluem, se perdem. Achava importante dar-lhes alguma vida, tentar que não desaparecessem completamente", diz o realizador. Não se trata de um olhar nostálgico ou saudosista, sublinha. "Mas são sítios que têm um lado poético, de coisas que existiram, que fizeram parte de histórias deste país."

Inicialmente pensou usar excertos de filmes antigos, postais, ou até encontrar pessoas que pudessem contar histórias sobre aqueles sítios. Pensou, inclusivamente, em alargar o filme a outras coisas que estavam a desaparecer, "profissões, jardins, matas, falar da transformação de certas coisas, da construção de campos de golfe ou do efeito das auto-estradas nos percursos dos animais", não numa perspectiva sociológica mas apenas como uma constatação de que é assim. Mas à medida que ia filmando foi abandonando essa ideia. O filme foi-se tornando cada vez mais depurado até chegar ao essencial: espaços vazios e sons.

O que vemos e o que ouvimos

E o que faz a força de "Ruínas" é esse cruzamento, sempre ligeiramente deslocado, entre o que os nossos olhos vêem e a história que estamos a ouvir. No Restaurante Panorâmico de Monsanto, enquanto a câmara mostra uma escadaria, a janela panorâmica, os murais, uma voz lê uma ementa de um livro de receitas do século XVI - uma lista de iguarias que, para Mozos, "se conjugava com aquela monumentalidade".
Às vezes, como no caso do sanatório das Penhas da Saúde, o que ouvimos - neste caso: relatórios médicos com todos os pormenores sobre o estado de saúde dos doentes à entrada e à saída do internamento - tem a ver com a história do sítio. Outras vezes é apenas uma história que podia pertencer àquele lugar, e só por acaso não pertenceu - como a carta a perguntar quais os preços de um fim-de-semana para um grupo de amigos num hotel, lida sobre a imagem da Estalagem de São José, em Porto da Barca, junto ao mar, um sítio onde Mozos chegou a ficar alojado antes de o estabelecimento fechar e começar a resvalar para o esquecimento.
"Na recolha de textos interessava-me ir para coisas que não ficam como grande literatura, procurava mais literatura de cordel, epistolar, relatórios, ementas". Ficaram três poemas. O resto são textos como o edital "Ao povo do Barreiro sobre o lançamento de uma bomba", de 1934, ou uma carta com um pedido de empréstimo - "coisas um pouco fúteis, do dia-a-dia, que as pessoas guardam, mas que nunca ficarão como nada de importante a não ser para quem faz e para quem recebe".

Os "makavenkos" ["Memórias e Receitas Culinárias dos Makavenkos", de Francisco de Almeida Grandella, 1919], por exemplo, aparecem mais do que uma vez, sem qualquer ligação aparente com o que estamos a ver. Mas este clube de "bon vivants", formado para os prazeres da comida, fundado em 1884 por Grandella e alguns amigos, apareceu naturalmente no processo de pesquisa de Mozos.
"Vi uma vez numa revista uma notícia sobre a construção de um sanatório que nunca tinha sido terminado no Cabeço de Montachique, e percebi que o Grandella, dos Armazéns Grandella, tinha feito parte das pessoas que se juntaram para esse projecto."

Mais tarde, descobriu numa livraria o livro de Grandella e interessou-se primeiro pelo lado da gastronomia. Só depois encontrou uma série de outras histórias. "Havia uma lenda de que haveria um cofre enterrado no Cabeço de Montachique com moedas a que eram para pagar o sanatório. O edifício é estranhíssimo, tem uma configuração de estrela, o que tem a ver com [sociedades secretas como] as maçonarias, as carbonárias." Soube que o realizador António Macedo fizera lá um filme, e quis vê-lo. Depois filmou o sanatório que nunca chegou a existir, mas as imagens acabaram por praticamente não entrar no filme, à excepção de dois planos ao cair da noite - como se o edifício não conseguisse libertar-se da maldição de nunca conseguir materializar-se.

Um país pequeno

Mas os textos dos "makavenkos" ficaram, entre a história de "Henriqueta, uma heroína do século XIX" e o livro de ciências naturais para a 4.ª Classe do Ensino Primário e Elementar do ano de 1961. Com esses textos, os espectadores são conduzidos para a história que o realizador quer contar, seguem atrás dos fantasmas que ele ali quis projectar. Mozos não tem dúvidas sobre isso. "Um texto ligado a uma imagem atira obviamente para um lado." As mesmas imagens com outro texto contariam outra história. Durante a montagem experimentou vários textos (houve um enorme trabalho de pesquisa prévia sobre os lugares, com Ana Gomes e Dulce Mendes) combinados com diferentes imagens. "A construção ia-se fazendo por experiências, justaposição de imagens com sons, até eu achar que ficava assim. Mas era um jogo que podia tornar-se infindável."
O que ficou é também uma história do país. Ou melhor, são histórias de um certo país. Alguns espaços podem ser grandiosos, mas o que ouvimos são histórias pequenas, pequenas misérias. Um país pequeno?
"Penso que não fugimos a um lado pequenino mesmo quando se tentam coisas mais majestosas ou grandiosas. Em alguns dos textos há uma espécie de impotência, um lado quase tragicómico. Como na primeira história dos 'makavenkos', de um senhor que quer muito escrever uma peça de teatro e nunca consegue, ou o rapazinho que eles adoptam e depois a mãe leva embora. Há um lado, que sinto que é um bocadinho o país, de grandes esperanças mas, ao mesmo tempo, de uma certa mesquinhez, uma coisa de remediado."

Não é um filme sobre o Estado Novo, mas este insiste em espreitar aqui e ali, nos textos, nas imagens - nos velhos livros de escola e mapas do Centro Educativo do Mosteiro de Santa Clara ou no enumerar de serviços disponíveis (por categorias) para os funcionários da Hidro-Eléctrica do Douro. "Apercebi-me de que, se calhar, estaria excessivamente centrado no Estado Novo, mas não era isso que queria, para mim era o século XX, porque é o que eu conheço bem, vivi nele uma parte razoável da minha vida."

Há, em todo o filme, uma única cena com pessoas. É logo no início, no cemitério do Prado do Repouso, no Porto, no dia de Finados. Antes disso, apenas uma imagem: a implosão das torres de Tróia. "Quer esse plano de Tróia (quis filmar antes da implosão mas não foi possível) quer a sequência no Prado do Repouso têm um carácter metafórico para o resto do filme. O primeiro porque é a única coisa em todo o filme que desaparece. Depois da implosão só fica pó. E essa ideia do pó conduz-nos à questão do cemitério. Se não houvesse pessoas, o filme seria lido de outro modo. Nós, pessoas, temos uma memória. Mesmo quando as coisas desaparecem ficamos ligados a elas."

É por isso que os espaços vazios estão cheios de vozes.

Alexandra Prado Coelho in
ípsilon "Manuel Mozos nas ruínas das grandes esperanças"

A irmandade como cúmplice nas adversidades

Badkonake Sefid/The White Balloon (1995) de Jafar Panahi

Bacheha-Ye Aseman/Children of Heaven (1997) de Majid Majidi

28 de abril de 2011

Dayereh (2000)
Jafar Panahi

Primeiro contacto com o cinema de Panahi (foi assistente de realização de Kiarostami em Através das Oliveiras), Dayereh, objecto que me agradou por várias razões. Crueza é coisa que não falta, tudo muito numa descendência dos primeiros filmes de Kiarostami mas distantes do seu lirismo, na veia do realismo social e político que aqui incide acima de tudo na condição da mulher iraniana. Panahi não nos prende a uma personagem ou não nos quer ligar a ela, filma-as durante um tempo, mostra o seu desespero, a sua luta ou resistência contra as adversidades, contra as limitações sociais desta (da mulher) e segue uma lógica político-social para acabar na mulher ou na ideia da mulher (que aquelas todas a uma pertencem) que começa o filme. In english o filme chama-se The Circle, e o círculo realmente completa-se, até porque é aquele o destino da mulher que desafia as leis e convenções sociais muito devido à rigidez das leis e do controlo policial. É nesse sentido que Panahi nos traz a sublevação ou a subversão amorfa daquelas mulheres, vive-se muito sob o medo naquela sociedade onde não é suposto a mulher fumar e andar sozinha na rua.

Comecemos pelo inicio onde uma avó espera no hospital o nascimento do seu neto. Cedo lhe dizem que é uma menina e que a sua filha está bem, mas a família do genro esperava um menino, diz ela que eles quererão a separação. Panahi diz-nos que a mulher nem sequer é desejada, estabelece ali um paralelismo entre o nascimento da mulher e o círculo que se fecha naquele final, como se aquele destino fosse à nascença marcado pela condição de indesejada. Há ali um forte sentido de condenação da mulher (não só da que nasce como da que dá a nascer), qualquer coisa a bradar pela injustiça da sua condição numa desesperança constante. É rápido que Panahi nos transporta para as ruas de Teerão (seguindo aquela avó desesperada) onde também rapidamente nos leva a seguir duas mulheres fugidas da prisão. Tentam resistir, esconder-se, andam em busca do paraíso como uma delas lhe chama (a terra dela), mas é tudo sem esperança, condenadas ao falhanço que a sua condição remete, são procuradas, uma mulher sozinha tem de apresentar os documentos (coisa que não têm), a polícia controla tudo. Separam-se, uma delas desiste da utopia, seguimos a outra que após conseguir comprar o bilhete para a sua aldeia tem de fugir da polícia, ela vai em busca doutra fugitiva que é de Teerão, brevemente passaremos a seguir essa e depois outra e depois outra até no final se fechar o círculo.

A crueza acentua acima de tudo o tal realismo social e político assim como arrasta consigo uma liberdade da imagem (deambulando entre a claridade e a negrura) no que a esse realismo toca. Denota-se também uma ocasional influência dos Dardenne (a câmara à mão e o ritmo e a aproximação com que segue os personagens). Grande filme.

27 de abril de 2011

L'aveu (1970)
Costa-Gravas

O cinema político sempre foi subversivo, terreno próprio do que se reclama, coisa reaccionária ou revolucionária, declamador de “gritos” ou simplesmente do “grito” pela verdade, coisa brutal na sua busca por essa verdade (ou verdades) ou pela demonstração da causa, denunciador de autoritarismo e de opressões, de abusos do poder. L’aveu é isso tudo e muito mais, brutalidade da História na estória (que por mais real que a saibamos sempre nos lembra algo kafkiano pela sua inclinação ao absurdismo) e na sua denúncia. Por isso, coisa a reter e a dar importância como objecto cinematográfico em L’aveu é a sua mise-en-scène e as interpretações (Yves Montand sobretudo).

25 de abril de 2011

Bal é o primeiro contacto de Yussuf com a morte (o segundo da trilogia), um retracto vivo e harmonioso (e naturalista e contemplativo e sublime…) da relação dum pai com o seu filho, o olhar maravilhado deste pelo pai, a força ou a influência que um pai exerce no filho, o começo de tudo, a origem da sua definição enquanto ser humano social e colectivo, em última instância, a sua definição enquanto poeta. Mas mais importante ou o que faz de Bal um grande filme é a sua mise-en-scène, como nos outros dois era também o grande trunfo, a forma de Kaplanoglu filmar, de abraçar a natureza, os silêncios, os ruídos (e por isso nenhum tem nenhum tipo de música). Por isso vemos nesta trilogia tanta influência em Tarkovsky, em Sokurov, em Tarr, em Dreyer e Bergman, pela espiritualidade da sua mise-en-scène, pela poesia das imagens, dos planos e dos enquadramentos, pela plasticidade e expressividade dos planos e dos actores, pela força deste cinema, pela sua beleza.
舞女 "Maihime" (1951)
成瀬 巳喜男 Mikio Naruse

Maihime, filme da resignação ou da aceitação do destino, coisa amorfa e brutal na brutalidade do destino ou das escolhas da vida que resultam no destino. Filme pessimista, triste e descrente no ser humano, na essência do ser humano, crueldade das escolhas ou da necessidade das escolhas ou da consciência humana, coisa terrivelmente anacrónica a remissão do pecado ou a brutalidade da renúncia do amor e da carreira pela família ou pelos filhos, coisa sacrificial, toda a infelicidade do mundo naquela mulher, naquela família. A esperança do outro que sempre espera, a máxima que às portas da morte ressalva o futuro da nova geração “Bailarinas…bailarinas dançam”, a força que este último “grito” do moribundo tem na alma daquela bailarina, filha de quem rejeitou esse dançar pela família e pelos filhos, filha que quase cai no erro da mãe, coisas do pós-guerra indubitavelmente, terrível abarcamento da depressão do pós-guerra que se espelha naquela mulher, no seu sofrimento ou auto-sofrimento, negrume dos negrumes no caos daquela família onde tudo é passado a viver o presente, um último suspiro pela conquista da felicidade e do amor proibido mas que face aos filhos se volta a rejeitar. Maihime é acima de tudo um manifesto da tristeza, da renúncia ao amor e à felicidade, do sacrifício da mulher. Grande filme.

23 de abril de 2011

El Espíritu de La Colmena (1973)
Víctor Erice

A mente duma criança é o lugar mais fértil imaginativamente e fantasiosamente, mundo de fantasias e fantasmagorias, espaço de irrealidades e utopias constantes, por vezes desligado do mundo e da realidade. Ora, o que acontece em El Espíritu de La Colmena é precisamente a exploração da mente imaginativa duma criança. Antes de mais, Fernando o pai é um homem obstinado pelas abelhas e pelo estudo destas faltando até com o afecto e o amor para com a esposa. Esta, por sua vez, mergulha num estado alienado em que “reclama” pelo amor (ou amores?) passado, escreve cartas para ele e vive assim imersa numa vida isolada/solitária. Isto faz com que as crianças, Isabel e Ana, se encontrem “abandonadas” na exploração daquele pequeno mundo provinciano onde a chegada do cinema ambulante é o grande acontecimento. O filme, Frankenstein, cria incompreensibilidades em Ana, não compreende o destino fatal do monstro nem os actos deste. Por isso, esta procura da racionalização do que vira naquele filme revelar-se-á também ela brutal para a compreensão mental da criança, originando assim uma sucessão de acções que traduzem a imaginação e a compreensão do filme e da realidade por parte de Ana. Assim, El Espíritu de La Colmena mergulha na imensidão da alienação daquela família que origina esse vaguear mental da criança onde a ilusão e a alegoria tomam controlo total culminando naquele colapso mental pelo choque do confronto ilusão/realidade. Erice consegue criar alguma claustrofobia e acima de tudo um vazio afectuoso na imensidão daquela casa, fá-lo na iminência de outro confronto, o da inocência perdida face à feiura e desilusão da realidade criando nela (na criança) uma confusão mental que a leva ao colapso. El Espíritu de La Colmena é uma fábula lírica e maravilhosa sobre a perda da inocência infantil.

22 de abril de 2011

Tabu e City Girl são dois objectos tão negros mas tão negros quanto as noites mais escuras, coisas pueris que desembarcam na crueldade do mundo, do ser humano, coisas que vão aos confins do inferno, que trazem as trevas à terra, objectos tão utópicos na sua premissa (a felicidade total) que têm forçosamente de cair na lucidez da realidade e da crueldade, coisas brutais na irascibilidade da humanidade, na fervorosa desumanidade do mundo. City Girl é a esperança e Tabu a desesperança, City Girl é a vida e Tabu a morte. Mas ambos são a negrura do mundo no cinema. É Murnau no seu esplendor ou num (ou dois) dos seus esplendores, é a maravilha do cinema, a alma do cinema em toda a sua força, toda a magia e beleza do cinema está ali em Tabu e City Girl.

19 de abril de 2011

O Rio do Ouro (1998)
Paulo Rocha

O Rio do Ouro, objecto tão obscuro e tão pleno de ritos em toda a clareza e aquele amarelíssimo (do ouro), como disse Jean-François Rauger, ópera da matéria. Ópera pelos cantares, coisas de tradições rurais. Paulo Rocha volta, de certa forma, ao provincianismo de Os Verdes Anos (e traz de volta consigo uma portentosa e assombrosa Isabel Ruth) que aqui se confunde com ruralismo (se do mesmo não se tratar). Fá-lo brutalmente e cruelmente, novamente a tragédia, aqui o rio, mito atrás de mito, crueza e ruralização da lenda, do ritual, invejas a despontar a tragédia dentro de todo um surrealismo e de toda a forma primorosa de filmar, de enquadrar e de montar. É o limbo do cinema, coisa agreste a desbravar qualquer maneirismo, qualquer facilitismo, coisa anacrónica brutal, ontologia da forma e da matéria, coisa brusca do amor que resulta ou tem de resultar na tragédia, “António não tens idade” grita Carolina quando este se atira ao mar para salvar Mélita, “já não tens idade António… já não tens idade” e voltará a repeti-lo no final depois da tragédia, consequência da inveja, do ciúme, das traições e da consciência da velhice que esta assume, mais do que súplica de precaução é imploração para não ir, para não a salvar, coisa a acontecer é o estar a sentenciar aquele recente matrimónio, idosos unidos pela necessidade da companhia, a fuga à solidão e ao passado, porque apesar da idade Carolina é tão jovem quanto Mélita “Tu tinhas o fogo no rabo… ninguém to consegue apagar” já lho tinha dito Joaquim antes daquilo, como já antes, no inicio, António diz para outro “A gente sempre volta ao principio”. São os fantasmas do passado a assombrar o presente e a augurar o futuro, Zé do ouro, o tal que viu o passado naquele momento no comboio, num espantoso plano que acontece ao passar pelo túnel, a luz vai-se vem a escuridão e as luzes amarelas do comboio alumiam a cara de Zé e o reflexo na janela de Carolina e de Mélita. “E não tem medo? - Medo eu?” e o passado (que se augura como futuro) assombra Zé do ouro, contraplano e a expressão de medo de como quem viu a morte ou o diabo em Zé que se apressa a fechar a mala do ouro para fugir dali e novamente plano da janela no escuro alumiado pelo amarelo das luzes do comboio e desta vez só vemos Mélita como que surpresa por tudo aquilo sem saber bem o que aconteceu, contraplano novamente e Zé foge dali como o diabo foge da cruz perseguido por Carolina. Vai-se a cena e da perseguição lá no fundo do fundo do comboio em que esta alcança o fugidio Zé do Ouro e lhe pergunta se viu o diabo este lhe responde entre outras coisas “…manchas de sangue… crimes de sangue… tome cuidado com a rapariga. - Porquê, corre perigo? - Não é isso. Não me faça falar”. Não foi, ao contrário do que lhe dirá mais à frente, o passado de Mélita que ele viu, foi antes o futuro de Carolina “Você é uma mulher perigosa. - Eu? - Leva um homem à perdição”, a tragédia, da vingança que nasce ali no rio naquele momento em que António salva a sobrinha, a jovem que o dos ouros diz atrair a desgraça. Traições e danças ao vento e à luz da fogueira em brincadeiras de crianças que culminam na tragédia, na morte, coisa bravia que vem do caos da humanidade, da fúria da irracionalidade, da loucura humana, da crueza e da sua ânsia no pecado, todo o pecado do mundo e da humanidade está ali naquele pedaço de terra, naquela gente, vai tudo jazer no rio (o ouro pertencer-lhe-á), tudo é mito, tudo é brutal mais que brutal na matéria e na forma e principalmente nas imagens. Magnífico.

18 de abril de 2011

The Horse Soldiers (1959)
John Ford
Não costumo (nem gosto, nem quero e por isso este post revela-se uma excepção) discutir política, muito menos aqui no blog onde me costumo dedicar ao cinema e à música (coisas que realmente prezo), mas esta notícia é de realçar porque demonstra o estado em que esta merda está. Então escolhe-se um gajo que não é de cá? Que é que este senhor (que não é de cá logo não tem amor à terra logo está-se bem a cagar para Bragança) irá fazer pela terra lá no antro dos corruptos da nação? Meus senhores, eis a resposta: nada (encher os bolsos como os outros!).
Ao acabar de ver o filme só "me vinham" três palavras à cabeça: puta que pariu.

17 de abril de 2011

Winter’s Bone (2010)
Debra Granik

Winter’s Bone é, no que a cinema diz respeito, das melhores coisinhas que os Estados Unidos lançaram no ano transacto. Não que seja uma obra (melodrama, film noir) que se transcenda ou imaculada, sem falhas, mas porque no seio da enxurrada fútil e sem alma que Hollywood produz por ano (lembro-me de Frozen River como outro exemplo disso mesmo em 2008), Winter’s Bone consegue afirmar-se como um grande filme que, inserido no realismo moderno em voga nos dias de hoje (onde se vislumbram influências dos Dardenne), aposta na crueza e no sentido político/crítico para explorar uma América profunda, sombria e “esquecida” onde a lei é coisa perdida. Mas o que realmente interessa é que a cineasta soube fugir aos facilitismos, aos clichés, ao sensacionalismo, à pirotecnia do costume numa história que o permitia. E isso é de enaltecer por terras do tio Sam.

16 de abril de 2011

Yumurta (2007)
Semih Kaplanoglu

Se há coisa que Yumurta faz é lidar com a culpa, com os remorsos, com a dor da perda mas mais importante com a dor da inevitabilidade, do “não volta mais”, do “podia ter feito isto e aquilo”. Assim, o primeiro filme da trilogia de Yusuf (a tal trilogia ao contrário) é, na sua superficialidade, uma dissertação da reacção humana à morte do ente querido. Mais fundo, entranhado na consciência do poeta, e embora mergulhado em rituais e superstições religiosas, Yumurta é essa exploração do filho que vive longe da mãe e que, ao perdê-la, se auto-comisera e consciencializa do tempo perdido (com a mãe) que essa distância/ausência lhe causou. Kaplanoglu filma tudo com uma calma inaudita, gosta dos silêncios, das expressividades, dos olhares, dos gestos, coisas que dizem mais que mil palavras, coisas que nos fazem estar atentos aos detalhes, cinema na sua verdadeira forma ou simplesmente cinema do caralho, cinema contemplativo, naturalista, coisa minimalista e poética. Sublime.

15 de abril de 2011

Круг второй (1990)
Aleksandr Sokurov

Круг второй (The Second Circle), filme do tormento ou do purgatório como já alguém escreveu, coisa dantesca (e não é só o título que a isso recorre) na formação do espaço ou da leitura temporal ou, mais que isso, na sua conturbada génese temática da morte ou da reacção à morte, espiritualidade e coisa invariável sobretudo da brutalidade do mundo, terrivelmente anacrónica e acima de tudo imutável na sua característica ou melhor na sua origem. Toda a desolação do mundo assola aquele espaço claustrofóbico e dúbio daquela casa em que, filmada por Sokurov, ainda mais abafada fica, como se todo o ar que o ser humano necessita para viver, todo o ar que àquele cadáver foi retirado nos fosse também a nós a pouco e pouco consumindo, em toda aquela negrura do apartamento, como se o local onde o cadáver permanece ficasse também ele contaminado pela obscuridade da morte. Coisa brutal em toda a perplexidade daquele filho, a apatia que lado a lado com a dor ameaça ruir tudo, tudo mas tudo que desaba em cima dos ombros daquele homem, o mundo todo em constante desmoronamento, coisa ascética e tormentosa que vem do interior. A queda iminente aos confins do inferno na terra e na vida, coisa que Sokurov filma magistralmente, monumentalmente, brutalidade das brutalidades, o impacto da morte do ente querido, a força da reacção ou da forma de lidar com a morte e com o que há a fazer, crueldade das crueldades que não dá tempo para chorar a morte de quem se ama causada pela obrigação de limpar o corpo gélido do defunto e tratar do serviço fúnebre, qualquer coisa sagrada que faz com que aquele filho se recuse a cremar o corpo do pai. Melancolia insolúvel que causa irascibilidade no espectador, coisa contínua no tempo, crueza da vida e do ser humano, reflexo deste e da sua insensibilidade, as heranças (ou o que se lhe assemelhe) efémeras que nada mais fazem senão resumir toda uma existência e uma cultura humana, a dor, a morte. Круг второй é um filme sublime, uma obra-prima sem contestação. Assim se faz o bom cinema.

14 de abril de 2011

(Carregar na imagem para aceder ao meu texto sobre o filme publicado na rubrica mensal da Tertúlia de Cinema).

13 de abril de 2011

Nunta Mutã (2008)
Horaţiu Mǎlǎele

Tragicomédia hilariante, fábula descendente do cinema de Kusturica, Nunta Mutã é um tour de force que maravilha o espectador. Coisa sem facilitismos, sem clichés, sem artifícios, sem sentimentalismos desnecessários. Filme da liberdade, história trágica duma pequena localidade romena em tempo de ocupação soviética, reclamação da liberdade, grito de revolta pela opressão e pelas atrocidades soviéticas. E é isso que me agradou tanto em Nunta Muntã, a sua capacidade de contar uma tragédia de forma cómica, visitando o non-sense, o surreal, a obscuridade. Está lá isso tudo e sempre fugindo da dramatização, da sensibilização comum, do apelo à choradeira mas nunca esquecendo a crueldade da história. Grande filme.

A minha última aquisição

11 de abril de 2011



Genial.
Mossafer (1974)
Abbas Kiarostami

Mossafer, retracto cuspido do realismo, estória simples dum miúdo que não quer nada com os estudos e só pensa no futebol. Da simplicidade nasce a irremediável aventura do tal puto que tudo faz para arranjar dinheiro e ir a Teerão ver a selecção iraniana. O que interessa, ou o que é realmente importante nesta história de ilusão infantil é a forma como Kiarostami (e forma que viria a “cunhar” o seu cinema) relaciona aquele realismo com o seu lirismo, coisa bela não só nesse relacionamento como no poder das imagens e da sua crueza. O que interessa é que esse lirismo em comunhão com o realismo acentua não só toda a noção daquele “mundo” em que aquele miúdo vive como a própria percepção deste nos seus actos, coisa culminada naquele final assombroso (e onírico) que diz tanta coisa. Grande Kiarostami.

10 de abril de 2011

Terra Estrangeira (1996)
Walter Salles

Depois de ter apreciado (e muito) o Central do Brasil seguiu-se este Terra Estrangeira, coisa que me deixou bastante desiludido. Terra Estrangeira é um mainstream brasileiro filmado em Portugal e no Brasil que mete fastio, ou seja, quer embelezar (o que consegue, claro) com a fotografia a preto e branco, alguns planos e enquadramentos bem conseguidos, mas depois revela-se um filme inócuo quando quer ser o contrário, começa por explorar a crise brasileira do inicio dos anos 90 e o seu impacto naquela mãe e filho para depois se desenvolver como um thriller ou como um noir muito reles e “à lá Hollywood actual”. Vazio, coisa previsível.

9 de abril de 2011

Brutalíssimo.
Ghost Dog - The Way of The Samurai (1999)
Jim Jarmusch

Ghost Dog é um filme negro, com tanto sentimento quanto metodismo, frio, solitário, minimalista, coisa própria de Jarmusch. Filme de movimentos, de olhares, de acções, de planos e enquadramentos, de códigos. Ghost dog é um noir, ou um noir moderno, filme de crime e de códigos criminosos, coisa brutal na sua tranquilidade total. Puro Jarmusch, quem conhece o cinema de Jarmusch sabe que Ghost Dog é puro Jarmusch, está lá tudo a que nos habituou. E Whitaker tem aqui muito provavelmente a sua melhor interpretação depois da de The Last King of Scotland.

8 de abril de 2011

Moolaabé (2004)
Ousmane Sembene

Ousmane Sembene, cineasta senegalês, a julgar por Moolaabé cineasta político, revolucionário como aquela mulher o é, heroína entre as heroínas, reflexo do tormento e da resistência humana (sobretudo feminina que é o alvo aqui). Moolaabé, filme da simplicidade da temática (a mutilação genital feminina), filme da liberdade narrativa, rejeita qualquer sensibilização desnecessária, romantizações e enredos da história ou vitimizações apelativas à choradeira e ao sentimento de pena do costume. Nada disso. Moolaabé é um filme muito objectivo na sua mensagem política e revolucionária. Quer mostrar a crueldade sim, quer mostrar a ignorância sim, quer mostrar os ritos e os costumes daquele povo, da África longínqua, quer mostrar a opressão e a tentativa de impedir o desenvolvimento e consequente desopressão, mas sobretudo quer mostrar a força da sua heroína, quer mostrar que é possível a sublevação contra aquela tirania. É um grito de revolta contra obscurantismos, fanatismos, crenças e cultos ultrapassados e estupidificados. E é espantosa a forma como Sembene faz um filme tão claro, quase sempre à luz do dia como se essa luz quisesse personificar a luz da revolta, do basta que, excepto Collé, nenhuma mulher foi capaz de proferir, ou então como se essa luz viesse simbolizar o moolaabé (protecção sagrada que Collé invoca para proteger aquelas garotas). Monumental.

7 de abril de 2011



Central do Brasil (1998)
Walter Salles

Central do Brasil é filme da descoberta. Tudo o que se queira chamar de compaixão, de amizade, de afecto, tudo que se possa assemelhar a isso está lá, ali naquele Brasil do nordeste, das aldeias e do fim do mundo. Tanto humanismo que se rejeita naquela azáfama citadina e que se (re)descobre naquela viagem , tanta ternura no meio de tanta miséria. Central do Brasil é uma história do reencontro interior, duma segunda oportunidade, da reconquista da alma, da perda do medo dos fantasmas do passado, a procura do afecto e da aniquilação da solidão interior. Coisa simples que abrange o mundo, a humanidade, o tempo. Central do Brasil é qualquer coisa tão bela e tão emotiva que a poucos é possível. Beleza cristalina da candura da infância que força a descoberta ou a auto-descoberta, o tempo que arrasta a ternura e esse humanismo tão presente como tão tempestuoso, relação tempestuosa entre aquela professora reformada e aquela criança que perde a mãe tão brutalmente e abruptamente que culmina nessa conquista desses laços tão fortes e tão sólidos que naquele final se revelam, a beleza daquela poeira amarela do nordeste brasileiro, da desertificação do nordeste, das localidades. A busca daquela criança pelo pai é a fé e a esperança que desapareceu em Dora, causa do tempo, da dor que o tempo traz, da resignação que o ser humano normalmente aceita. Aquela viagem é essa redescoberta da esperança, do amor paternal, da rejeição do esquecimento. Provavelmente o melhor filme brasileiro que vi até hoje.

6 de abril de 2011

O tragicismo provinciano

Coisa pueril provinciana que vai-se emoldurando na azáfama e contaminação citadina, é de chegada e de partida que a candura tanto cinematográfica (começava aqui o Novo Cinema Português) como daquele jovem sucede. A inadaptação e a rebeldia em Júlio, coisa própria da mocidade, da vivacidade da mocidade, o sangue a ferver, a vontade de vida, de singrar, do amor. Há mais do que ruptura com o cinema clássico português, há toda uma renovação quer em termos de estrutura narrativa quer cinematográfica, «na respiração fílmica, na atenção aos movimentos de câmara, à realidade plástica dos planos, aos tempos.» (Jorge Leitão Ramos, in Dicionário do Cinema Português 1962-1988, ed. Caminho, Lisboa, 1989). Os Verdes Anos vem desbravar aquilo que o cinema clássico não conseguiu, não só a temática da qual se desprende como da forma como a aborda (à nova temática), conseguindo trazer um realismo cru e claustrofóbico daquela Lisboa dos anos 60, conferindo àquela geração (neste caso a provinciana) uma asfixia e uma inadaptação àquele meio que tolhe a nova geração, «Ainda, Verdes Anos, é o filme que melhor dá a ver Lisboa e Portugal como espaços de frustração, espaços claustrofóbicos, sem saídas, onde tudo se frustra e tudo agoniza numa morte branda.» (João Bénard da Costa, in Histórias do Cinema, Sínteses da Cultura Portuguesa, Europália 91, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa). Mas não é só o realismo que Os Verdes Anos augura, coisa trágica que lembra tanto o Rocco de Visconti e todo o neo-realismo italiano, é também um manifesto político por essa frustração e claustrofobia que aquela Lisboa (reflexo do resto do país) oferece, precariedade e falta de oportunidades, as próprias mentalidades enraizadas no costume vicioso, um grito de revolta por esse fluxo de miséria e de subdesenvolvimento que o país atravessava. É sem dúvida o “pai” do novo cinema português, «o que faz de quase todos os melhores filmes posteriores seus herdeiros.» (João Bénard da Costa, in Histórias do Cinema, Sínteses da Cultura Portuguesa, Europália 91, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa).

5 de abril de 2011

Onna no Mizuumi (1966)
Yoshishige Yoshida

Uma mulher tem um amante (mais jovem), uma noite é assaltada por um homem que lhe leva a carteira, lá dentro tem umas fotografias suas (nuas) tiradas certa vez pelo seu amante. A partir daí vem a chantagem. Mas em vez de dinheiro o homem parece querer ter relações sexuais com ela. O que Yoshida faz aqui é qualquer coisa tão metódica (e aquela música ajuda tanto a isso), qualquer coisa tão fria e tão quente ao mesmo tempo naquele desejo sexual e em toda a perversidade daquela história de traição e chantagem. Tudo tão sereno e tão insólito nessa sua serenidade, a roçar o surrealismo (ou será por causa daquela música?), coisa bravia que parece aprisionada dentro de qualquer coisa que a impede de explodir, o medo e a coação na tentativa de resolver aquele “problema”, coisa que virá criar outro “problema”, ética ou moral incluída, orgulho ou honra, pudor ou atracção, desejo, tanta coisa que sucede ali, que atinge aquela mulher criando-lhe um enigma na decisão, porque ela está na dúvida, o amante diz-lhe que a ama e que irá viver com ela, que desfaz o noivado. Mas ela tem um casamento seguro (economicamente falando), mais vantajoso. O que fazer? Sucumbir ao desejo daquele desconhecido ou desistir de tudo e deixar que as fotografias sejam enviadas ao marido? É tudo tão físico, tão corporalmente expressivo, aquele final é a explosão total de toda a serenidade que pontua o filme. Yoshida podia ter feito um filme negro (eu teria feito, a história reclama isso), mas não o fez. Onna no Mizuumi é um filme de luz, de movimentos de câmara e enquadramentos monumentais, qualquer coisa visualmente poética ou ascética. Grande filme.