30 de junho de 2011

Deep End (1971)
Jerzy Skolimowski

Em Deep End existe uma angustiante, seca e crua forma de tratar ou de confundir o amor, o desejo e a obsessão. Crua visualmente, coisa com grão, sem filtros, sem brilho, coisa semi-profissional ou amadora diriam os adoradores do mainstream ou dos blockbusters. Essa crueza (que se faz acompanhar por movimentos de câmara brutais, iluminação e cores idem aspas) está lá para nos mostrar que o mundo não é bonito, é feio, é cru, carrega consigo a perversidade da humanidade. Assim como o mais profundo desejo sexual também o é, cru, angustiante, frenético, obsessivo, coisa que se embrenha na escuridão da alma tão escura quanto a noite que Mike passa ao relento naquela rua do “pecado” à espera que Susan saia daquele clube nocturno. É o negro da noite que nasce na alma de Mike e que o conduz para as trevas da tragédia, o negro da obsessão e do desejo que corrompe a candura de Mike, que o mergulha na demência e na alienação quer individual quer social. É essa caminhada vertiginosa daquela alma cândida em direcção àquele gesto repentino e impulsivo, coisa de segundos, momento final, a queda de um anjo. É a perda da virgindade ou o desejo dela, dessa perda, como símbolo da mutação quer moral quer intelectual do indivíduo ou da formação do indivíduo, é o primeiro contacto com a perversidade do ser humano, com a libertinagem dos adultos (Mike tem apenas 15 anos), é o fascínio e o desejo e a obsessão a confundirem-se com paixão ou amor, é a candura do homem a dissipar-se na bravura e na iniquidade do mundo. Brutal, tragicamente brutal.

28 de junho de 2011

The Treasure of the Sierra Madre (1948)
John Huston

The Treasure of the Sierra Madre é tudo mas tudo o que o cinema da actual Hollywood não consegue fazer, é tudo aquilo que foi desvirtuado pela maioria da mediocridade da nata hollywoodesca, coisa implacável, feita de quimeras que o vento levará, negro como a alma dos gananciosos, dos corrompidos, a esses nada restará, nem a vida, só a demência e a morte dos risíveis, o destino que o velho Howard lhes acautela antes da ida em busca do ouro, “Sei o que o ouro faz às almas dos homens” diz-lhe a Dobbs, ele sabe-o tão bem quanto Deus que a inevitabilidade da ganância é perigosa, fatal, inglória, que o ouro que perseguem na esperança dum futuro radioso e os planos e mais planos vindouros tudo isso se quedará na mais breve erupção da demência humana, tudo se desvanecerá na ganância de quem tudo quer. Dobbs, sobretudo ele, esse homem que antes era tão íntegro, tão humano e tão cheio de companheirismo que, nem quando forçado a mendigar ou quando explorado por aquele construtor sem escrúpulos se corrompe, seria ele o primeiro a refutar qualquer futuro acto ganancioso numa (ainda) imaginável caça ao tesouro “Não seria assim comigo. Juro que não. Só ficava com o que tinha ido buscar. Ainda que houvessem $500.000...”. Mas será ele o corrompido, sim, será o ouro a encarregar-se dessa mutação, nada o poderá reverter. Desde o inicio que é ele o conspurcado, o filho da cegueira de quem tudo e nada vê mas na qual só a ausência de Howard lhe torna possível a sua comutação, o justo que se torna injusto, o corrompido da alma. É ele que mergulha nas trevas da desconfiança, das traições fantasiáveis e da mesquinhez gananciosa, na maldição do ouro que tanto menosprezou, é ele que as traz, às trevas e à negrura do mundo e da alma dos homens para os assombrar a todos, a ele principalmente que tudo faz para se embrenhar nelas. Nada disto é possível nos dias de hoje, não há nem se voltarão a fazer filmes assim em Hollywood, grandiosos, monumentais.

27 de junho de 2011

The Hurricane (1937)
John Ford

The Hurricane, filme do céu e da terra, do mar e do vento, do paraíso e do inferno, do amor e do ódio, da lei e da injustiça. Tudo tão implacável, os heróis da candura, da pureza e da justeza, povo pueril - os nativos, guiados pelo amor, pela conquista da felicidade, a simplicidade da vida. The Hurricane, filme-irmão do Tabu de Murnau e do The Prisoner of Shark Island, toda a razão do mundo a José Oliveira neste texto, filmes negros da negrura do ser humano, da injustiça que traz as trevas aos justos, aos bons de alma, da injustiça que os faz pecar mas lutar, resistir, que os faz fazer qualquer coisa para escapar, voltar a casa, enfrentar o mundo, fugir à cárcere, filmes-tormento que tudo arrancam das sombras, do negro das noites, da maldade do mundo que tudo faz para trazer a tragédia. The Hurricane, filme-luz e filme-sombra, do resplandecente e da escuridão, das trevas que castigam Terangi e o seu povo, ao doutor que momentos antes da tragédia apregoara a vitória sobre a morte (que ceifava a vida da mãe de Terangi) com a vinda próxima dum rebento, filme do paraíso, dos momentos de candura entre aquelas duas almas que nada de mal fizeram para ter aquele tormento, da força do bem que tudo enfrenta para no fim alcançar a paz, a felicidade, do impossível tornado possível graças ao amor. Ah, The Hurricane filme-catástrofe, filme-catarse que chega no final, do perdão que DeLaage pede à mulher para depois o dar a Terangi, da brutalidade e da efemeridade, da luz e das trevas, da injustiça e do humanismo, do ódio e do amor, da vida e da morte, da fé dos justos. The Hurricane, monumento ao cinema.

26 de junho de 2011

Nema-ye Nazdik - Close-Up (1990)
Abbas Kiarostami

Close-up opens to a shot of a newspaper reporter (Hossein Farazmand) fetching two police officers on a taxi to go to a house on Golzar Street. A mild mannered, unassuming man (Hossein Sabzian) is led away by the officers as the reporter goes door-to-door in search of a tape recorder for the exclusive interview. The film credits appear, and immediately, a pattern emerges: all of the characters are portrayed by themselves, and the story is based of events that actually transpired. The newspapers provide a glimpse into the chaos of the scene - an announcement on the arrest of a "bogus Makhmalbaf" - and Kiarostami (off-camera) begins to conduct interviews with the parties involved. At the courthouse, Kiarostami asks for permission to film the trial, much to the confusion of the magistrate, Haj Agha. After all, why would a director of Kiarostami's stature take interest in a trivial fraud case, when far more serious and pressing cases exist on the court docket? The film then proceeds with the trial, as the participants recount Sabzian's deception and the events that lead up to his arrest. One day, while riding on a public bus, Sabzian reads a book entitled The Cyclist by film director Mohsen Makhmalbaf. The book catches the eye of Mrs. Mahrokh Ahankhah, and Sabzian, a film lover, impulsively claims that he is Makhmalbaf. He is invited into the Ahankhah household where he begins to survey the house as a potential setting for his new film. The Ahankhah family contend that Sabzian was taking an inventory of the house in preparation for a robbery. Sabzian explains that he was merely humoring the family's seeming interest in appearing in his film: a film that he, had he the financial means, would surely make. Soon, the sad, sympathetic portrait of Sabzian's life is revealed: a poor, underemployed printer's assistant, divorced by his wife, who found confidence and self-respect in impersonating the famous film director. But is his remorse genuine, or another act designed to win sympathy from the court? Is he playing a role for the benefit of Kiarostami's camera? Sabzian's true intentions remain ambiguous until the remarkable, deeply moving scene when he meets his impersonated idol, Mohsen Makhmalbaf, in person. It is a searingly honest and intensely personal moment for the reverent Sabzian and gracious Makhmalbaf, that the question arises: are we still watching a film or real-life unfold before us? To Abbas Kiarostami, it is all one and the same phenomenon - a captured moment in the evolving document of life.

The Wings of Eagles (1957)
John Ford

The Wings of Eagles é filme trágico, docemente trágico, coisa de amores interrompidos, preteridos pela paixão ao ofício, amor pela marinha que grita mais alto que o amor pela mulher. No fim nota-se algum arrependimento, a solidão que sempre o acompanhou irrompe e alcança-o por completo, sentimento de culpa que sempre o teve, por fim chega o cansaço. Filme de retornos efémeros, de patriotismo claro está, de honra, dignidade, de escolhas, do sentido de dever. Nada da negrura do The Prisoner of Shark Island ou do The Informer ou do The Grapes of Wrath, tudo tão perto de The Long Gray Line, filmes de uma vida, dum percurso, de decisões escolhas caminhos, dramas da vida, do homem. Magnífico.

25 de junho de 2011

Medea (1988)
Lars Von Trier

Medea é provavelmente a melhor coisa que Von Trier já fez, Medea ou Breaking the Waves, um deles, objectos tão crus, tão obscuros e tão brutais. Sim, Medea é coisa bruta, medieval, teatral, dum romanesco sombrio e obscuro, objecto duma brutalidade comprimida que explode dentro da mitologia. Medea, o mito a obra, sempre foi objecto de várias explorações nas mais variadas artes desde a pintura à escultura, do teatro ao cinema. É a tragédia de Eurípedes segundo um manuscrito de Dreyer e Preben Thomsen nunca transposto para a tela. É a sua homenagem a Dreyer o mestre como Von Trier lhe chama. Trabalha-se no mito, na versão de Eurípedes que só por si é das coisas mais cruéis e frias jamais feitas. Trabalha-se no ambiente, na obscuridade e na negrura arcaica que remete para um tempo indeterminado. Trabalha-se na mulher traída, sábia e conhecedora das artes do mal como Creonte lhe diz no meio da neblina quando a visita para a banir do país, trabalha-se na vingança, no ambiente obscuro, sombrio, ambíguo e apocalíptico que confere o “pesadelo” ou o sofrimento ou a agonia que Medeia vive após a traição de Jasão. Sabemos, quando Egeu o diz, que Jasão tudo deve a Medeia, que houve ali um acordo para o seu sucesso (quem conhece o mito sabe qual foi), que algo de terrível Medeia fez por amor a Jasão (mais uma vez quem conhece o mito sabe que ela traiu o pai, sabe que matou o irmão para Jasão alcançar o êxito). E é daí que transborda a dimensão da traição que acarretará a tragédia cruel a que assistimos no final. Medeia tudo fará (coisa que o diz a Creonte na tal cena da névoa) para se vingar de Jasão. Mas Von Trier recusa a violência, o próprio acto final de Medeia é feito na mais plena tranquilidade onde se explora sobretudo a dor dela. Aí, recusa novamente de qualquer caracterização maléfica a Medeia, tendo esta, no entanto, toda a ira do mundo a Jasão pela sua traição, ira essa capaz daquela atrocidade final.

24 de junho de 2011

The Prisoner of Shark Island (1936)
John Ford

"The Prisoner of Shark Island" é parecido, à superfície, muito à superfície, com os tais action movies de evasão que hoje em dia a máquina hollyoodiana ou mesmo os autores respeitáveis tentam fabricar com tanto barulho que chega a ser tristemente cómico, mas o que temos em Ford é a profundeza e a implacabilidade da verdade contra a máquina trituradora da falsa justiça e da mentira. Tudo se reverte passado o calvário, mas o traço memória fica. E Ford chega ao transcendental pois a angelical e terrível luminosidade daquele meio está em compromisso de sangue com Warner Baxter, o doutor que caiu em desgraça e que nada de mal fez, aliança-luz contra os criminosos, aliança-luz contra os que do cinema se servem como brinquedo ou, muitas das vezes pior, como audiovisual. Luz-guia. Luz-desbloqueadora. A mesma força poética que o Condenado de Bresson. Não há quem os pare, aos nobres e aos de bom coração, esses perdidos de amor, desprendidos, conciência em paz. As grades arrebentam-se, os polícias tombam-se, os tubarões vergam-se, o mar encurta-se como se encurtava e se vencia na sequência do outro mundo em que o Jon Hall de Hurricane atravessava todas as forças circundantes porque se sabia amado e com razão, momento irmão do “Tabu” de Murnau e de Flaherty, a incontrolavél e vulcânica furia da natureza domada com a força interior essa chama unica do amor pela vida todas as promessas.
José Oliveira in -

22 de junho de 2011

Ossos (1997)
Pedro Costa

A Ossos hei-de sempre voltar, uma e outra e outra vez, revisitá-lo, descobri-lo sempre um pouco mais, adorá-lo sempre um pouco mais. Falo de Ossos como poderia falar de qualquer outro de Pedro Costa. Ossos é filme de transição na filmografia de Costa, condensa tudo o que fez antes e tudo o que faria depois. Meio documentário e meio ficção, coisa de realismo exacerbado imergido no lirismo dramático da ficção. Costa sempre alimentou o negrume do seu cinema, porque é aí donde nasce o seu realismo, nas sombras da vida, daquela vida, daquelas vidas, é o negro que vem d’O Sangue que explode em Ossos (e que explodiria nos seguintes), nos becos escuros e degradados do bairro, nos quartos e corredores das casas (ou o que se lhe possa parecer) que partilham o espaço com os becos, na miséria daquela gente, nas sombras das trevas que habitam a terra. É aí que nasce o realismo de Pedro Costa, é no escuro que vemos os olhares distantes e ausentes de Clotilde e de Tina, é no negro que rebenta a ausência do rumo daquela gente. O obscurantismo d’O Sangue perdeu-o aqui, acabou em Casa de Lava, ficou o negro do realismo, ficaram as sombras dum Portugal profundo, filma-se aquela gente e o seu local, filma-se o que aquelas pessoas são, porque é do bairro que elas são, porque é o bairro que as faz, porque aquele é o mundo daquela gente. E por isso o espaço é tão importante nos filmes de Pedro Costa (como os eram nos de Ozu e os são nos de Straub&Huillet), é no espaço que encontramos ou que descobrimos os personagens, um não vive sem o outro, é àquele espaço que ele (ou ela) pertence, é o realismo que os faz tão presos àquele mundo, ao seu mundo. É coisa abrupta, da crueza daquela realidade da qual ninguém quer saber, do submundo escondido aos olhos dos portugueses, é a crueza da câmara que regista o momento, objecto que documenta, que expõe, coisa que leva ao extremo nos dois filmes seguintes. Dilacerante. Monumental.

Lucky Star é uma fábula, o filme todo é uma fábula singela sobre a força de vontade, sobre o poder do amor, é coisa pueril, brutalmente pueril, baila com a candura do ser humano percorrendo a maldade, lado a lado, puro e impuro. É sobre o ser humano, a força interior do ser humano, o triunfo da candura, do amor e da verdade. Romantismo angelical, filme belo, implacável. Poder da imagem, poder das acções, poder dos planos, poder do cinema.

20 de junho de 2011

Lucky Star (1929)
Frank Borzage

Visto graças ao João Gonçalves
Valhalla Rising (2009)
Nicolas Winding Refn

Valhalla Rising é das maiores surpresas cinematográficas que tive ultimamente. Antes de mais, sim, Valhalla Rising é um filme enganador ou que aparenta ser mais uma bodega hollywoodesca como tantas outras mas que não é. Bem pelo contrário.

No que poderia parecer uma história épica e de aventuras encontramos apenas a história de um homem e da sua busca interior. O que falha (ainda que o aprimoramento visual exagere dando assim um rebuscar visual/fotográfico “limpinho” demais mas não seja causa maior dessa falha), é o misticismo criado em volta do homem e o obscurantismo procurado no seu interior, é, de certa forma, a divinização daquele homem dando assim uma compreensão desmesuradamente irreal e fictícia ao filme. Essa é a grande falha de Valhalla Rising, ainda que no final nos deparemos com a desvirtuação dessa divinização do guerreiro.

O que interessa ou o que me agradou foi não o aprimoramento visual latente do início ao fim mas a condução da câmara e da narrativa simplista e directa. Ou seja, Valhalla Rising opta pela contemplação, pelo naturalismo (The New World de Malick "à cabeça") e pela negrura. Opta por seguir o homem, sem grandes recursos ao diálogo e sobretudo com espantosos planos e enquadramentos. Temos violência que chegue (desmesuradamente até), afinal de contas é a história de um guerreiro viking (quase sobrenatural, quase invencível) feito escravo e liberto com a ajuda de um garoto que o seguirá para todo o lado. O garoto, ou a relação que se estabelece entre os dois, é a única demonstração de humanismo ou de afecto que aquele homem mostra. O resto, tudo é caótico, claustrofóbico, insano e essencialmente obscuro, como se ele (o guerreiro) previsse o futuro. O que me parece, acima de tudo, é que há a constante procura da animalização e da irracionalidade do ser humano, o que deixa, no final, a impressão da influência peremptória do Aguirre do Herzog.

17 de junho de 2011

Van Gogh (1991)
Maurice Pialat

Não tenho palavras para dizer ou para descrever o que é Van Gogh de Pialat, a obra-prima que é, a brutalidade ou a intensidade de filme que é, coisa tão bela e tão fresca assim como claustrofóbica, distante do mito e do artista, tão perto (ainda que tão longe sem que Pialat nos mostre o íntimo de Van Gogh) do homem, tão preocupado no homem, na sua angústia, na sua inadaptação e revolta interior pela ausência do reconhecimento global (ou comercial) da sua obra, da sua arte. Pialat filma mais o homem que o artista (ainda que o vejamos sempre obstinado no trabalho, nos quadros), a sua relação com as mulheres, coisa tão distante, a incapacidade de amar, de partilhar a sua obstinação na pintura com um amor ainda que a sua relação com Marguerite se aproxime tanto desse amor. É tudo tão inquieto, melancólico, naturalista, vivo, realista, cru, tão desprovido de qualquer moralismo ainda que a época assim o permita, tudo tão longe do convencionalismo e dos sentimentalismos habituais (ainda que haja tanta sensibilidade por ali). Um assombro de filme.

16 de junho de 2011

Este nem aquece nem arrefece, mais do mesmo, da mesma frieza e do mesmo metodismo de Petzold mas longe da crueza e da audácia de Gespenster. Tanto psicologismo assim sem mais nem menos não interessa, mal explicado (porque o tenta explicar), aquele twist final uma desgraça, um pouco clichezado, enfim, o pior Petzold que vi ainda que não seja de todo um mau filme.

15 de junho de 2011

Quem nunca viu um Eisenstein ou um Vertov ou um von Stroheim ou um Griffith ou um Murnau ou um Pabst ou um Dovzhenko ou um Pudovkin ou um Protazanov ou um Sjöström ou até um Chaplin, um Méliès e um Lumière e um Keaton não sabe o que é o cinema, qual a verdadeira essência do cinema. Não, por mais que o queiram refutar, não sabem.

14 de junho de 2011

夜の女たち Yoru no Onnatachi (1948)
溝口 健二 Kenji Mizoguchi

Há dois momentos fundamentais em Yoru no Onnatachi. O primeiro, na noite, negra (e Yoru no Onnatachi traz toda a negrura do mundo, como tudo o resto de Mizoguchi) como as trevas que parecem descer à terra e com elas trazer o destino fatídico daquela mulher, destino esse que se augura ali naquele momento em que o seu bebé, tuberculoso, sucumbe à doença. Momentos antes já a notícia da morte do marido a tombara, a condenara à miséria e ao sofrimento com uma criança tuberculosa para cuidar. E naquele momento pensamos nós que a morte da criança tenha vindo a atenuar o sofrimento e o caos em que a sua vida mergulhara. Enganamo-nos, porque se antes alguma dignidade havia em Fusako, depois da morte da criança fica a dor, a amargura e o vazio que mais tarde, e após a dura realidade e constatação dessa realidade (e da condição da mulher, e da desilusão face aos homens e à conduta destes para com as mulheres), a fazem mergulhar na degradação física e moral da prostituição. O segundo momento, em que a redenção é alcançada, é o final também ele negro como as trevas (novamente as trevas) donde se vai lavrar a redenção (ironicamente) e donde brota a dignidade da mulher ofuscada pelo sofrimento. Brutal, monumental, grandioso…obra-prima.

13 de junho de 2011

Odinnadtsatyy (1928)
Dziga Vertov

Question: Is it not true that certain shots in The Eleventh Year depend on symbolism?
D Vertov: No. We do not depend on symbolism. If it transpires that certain shots or montage phrases achieve, in the process of being perfected, the signficance of symbols, this does not make us panic and eject them from the film. We think that a symbolic film and shots constructed according to the principle of expediency but aquiring the significance of symbols are quite distinct concept.

Question: Why do you employ complex shots, cinephotomontage?
D Vertov: We resort to complex shots either in order to indicate simultaneity of action or to distnguish a detail from the general film image or to contrast two or more facts. Explanations asserting that this method is a stunt do not correspond to reality.

Question: Do you not think that the first few reels are better edited than the last?
D Vertov: In the last few days this question has been asked with particular frequency. The impression is deceptive. The first reel is obviously made on an easier level of visual perception. The fourth and fifth reels are constructed in a more complex manner. There is much greater montage ingenuity in them than in the first two: they look to the future of cinema more than the second and third reels do. I should say that the fourth and fifth reels stand in the same relationship to the first reels as a university does to a midle school. It is natural that more complex montage should force the audience to exercise more effort and should require particular concentration to be perceived.

Question: Was The Eleventh Year made without a script?
D Vertov: Yes, like all Cine-Eye films, it was made without a script. You are aware that our numerous opponents, speculating about our rejection of scripts, have tried to suggest that we are generally opposed to planned work.
Nonetheless, and despite these existing misconceptions, the Cine-Eyes devote more effort and attention to their preparatory plans than do those who work in played films. Before we start work we study our particular theme extremely carefully in all its manifestations, we study the literature on this particular question, we use every source available to ensure that we can represent the matter as clearly as possible. Before we start shooting we devise a thematic plan, an itinerary and a shooting diary. How do these differ from a script? By the fact that all this is a plan for the actions of a camera bringing a particular theme to life and not a plan to stage the same theme. What distinguishes a plan to shoot a real battle from a plan to stage a number of individual battle scenes? This is roughly the difference between a Cine-Eye plan and a script in fiction cinema.

Question: The last question concerns intertitles and many comrades put it like this: How do you explain the abundance of titles in A Sixth Part of the World and their lack in The Eleventh Year?
D Vertov: In A Sixth Part of the World we were dealing with the experiment of taking the titles beyond their parentheses by creating a specific 'word-theme' series. In The Eleventh Year the 'word-theme' has been eradicated and the meaning of the titles has been reduced practically to nothing. The film is constructed by interweaving film phrases without using titles. The titles in The Eleventh Year have almost no meaning. Which is better? The first experiment - or the second? I think that both experiments - both the creation of a 'word-theme' and its eradication - are equally important and have very great significance both for the Cine-Eyes and for the whole of Soviet cinema.

9 de junho de 2011

Le Trou (1960)
Jacques Becker

Le trou é filme máximo, coisa quase perfeita, lapidado a bruto, beleza quase tão bela quanto o filme do Bresson mas mais realista e mais lúcido não nos detalhes e na minuciosidade, aí tão igual tão similar ao Un Condamné..., mas sem a fé na redenção que o filme do Bresson tem, mais duro mais preocupado com a liberdade. A arte de filmar, de observar, dos detalhes, de contar uma fuga (ou o que restou dela)...

8 de junho de 2011

Wanda (1970)
Barbara Loden

Wanda, filme de culto não só por ser a única longa-metragem dessa mulher que teria muito mais a dar não lhe fosse ceifada a vida por um cancro em 1980 (assim como a sua carreira de cineasta que além deste Wanda nada mais viu a luz do dia, excepto duas curtas-metragens em 75), mulher ou esposa de um dos grandes nomes do cinema clássico norte-americano, Kazan, mas também porque Loden faz com Wanda o que Kazan não fez em nenhuma das suas obras. Em Wanda é tudo tão cru e tão arcaico ou anacrónico, rudimentar, coisa com grão que é coisa que desagrada à maioria dos cinéfilos (ou àqueles que se julgam cinéfilos), sem embelezamentos visuais, sem quaisquer resquícios de sensacionalismos ou de facilitismos. É tudo tão desmesuradamente real, forte, psicologicamente violento, sombrio e tão prestes a eclodir toda essa violência. Subversivo. Mas nada de violento se passa, ou de explicitamente violento, até porque de violento só mesmo Mr. Dennis. Em Wanda encontramos o que parece ser uma mulher letárgica, frustrada, desolada, sem rumo, uma alma perdida e errante (assim como Mr. Dennis), apostada em ser “levada” ou “arrastada” pelos homens com quem se relaciona, uma mulher que procura refúgio ou um certo tipo de liberdade nos homens que encontra, nas relações que assume com tanta facilidade, como se procurasse uma companhia mas quisesse sempre a sua liberdade que afinal não é mais do que a sua letargia, coisa duma dissidente que não sabe o que quer, que acredita que é melhor estar morta (como diz a dada altura), que vagueia sem rumo atrás daquele homem que lhe rouba as réstias dalguma dignidade e moralidade que ainda tinha. Wanda é literalmente uma inútil (novamente palavras dela), mulher que não se importa com o divórcio e que relega a tutela dos filhos ao pai - eles estão melhor com ele - diz ela. Como diria Mozos, Wanda “é um retrato frágil e singular, magnífico e vigoroso de uma sociedade triste e pardacenta, indiferente aos loosers que ela própria criou e que não se encaixam no American Way of Life.” O final, aquele final tão brutal quanto o próprio filme e sobretudo quanto toda a caminhada de Wanda para esse final onde naquele momento todo o terror da consciencialização da sua realidade e da sua própria letargia e erradicação do mundo e da sociedade é coisa tão brutal quanto lírica, tão dolorosa quanto bela, tão cheia de resignação quanto de sacrifício. Wanda é filme de culto porque é mais que um simples filme, é uma das melhores obras que já se fez na América.

6 de junho de 2011

Les Favoris de la Lune (1984)
Otar Iosseliani

O cinema de Iosseliani parece-me, ao cabo de três filmes vistos (mas particularmente neste), assentar as suas raízes ou influências cinematográficas nesse grande senhor da comédia pantomímica que foi Tati. Aquilo que me parece, também, é de que o seu cinema é feito de sarcasmos, de sátiras ao ser humano e à sua inerente obsessão no materialismo acima de tudo, coisa mordaz e burlesca sobre o ser humano. Les Favoris de la Lune é uma comédia burlesca como Jardins en Automne, filme de planos-sequência e de absoluta mestria em cruzar histórias e personagens nesses planos-sequência, no ritmo, no absurdismo de tudo, um prodígio da mise-en-scène.