23 de maio de 2012

Natais Brancos

«Um Natal sem presentes nem parece Natal.» Era assim, se a memória não me trai, que começava a adaptação portuguesa – As Quatro Raparigas – do popular romance de Louise May Alcott, Little Women, tantas vezes adaptado ao cinema. Estou de acordo. Sempre adorei dar e receber presentes, no Natal mais do que nunca. E sou daqueles que gosta do Natal, que gosta imenso do Natal. Natal com todos os efes e erres, com todas, todas as tradições. Desconfio até das pessoas – falo daquelas que não entraram para a vida pela porta de serviço – que não gostam do Natal. No sentido em que Godard dizia, no Petit Soldat: «Méfiez-vous des femmes qui n’aiment pas manger.»

Mas quando eu era miúdo, não era só um Natal sem presentes que não era Natal. Era um Natal sem Cinema, ou um Natal sem Circo. Filmes e Coliseu eram inseparáveis da festa. Com as tias velhas e os primos diferentes, foram das coisas que perdi. As tias morreram, os primos tornaram-se diferentes (ou indiferentes), o Circo acabou. Só o Cinema continua.

Em relação ao Circo tinha sentimentos contraditórios. Fascinava-me mas assustava-me. As feras, os faquires, os prestidigitadores, os ventríloquos, sobretudo os palhaços. E o sr. França, que não se chamava José-Augusto. Eram reais e irreais, ao mesmo tempo e demais. Depois, um triste dia, descobri que não havia palhaços, que os palhaços não existiam. Foi quando me cruzei na rua com um sisudo e insignificante cidadão e alguém me disse que aquele era o palhaço rico, da cara branca, do Coliseu. Tive um choque muito maior do que no dia em que soube que afinal não era o Menino Jesus quem descia pela chaminé para me por os presentes no sapatinho, ou quando soube como nasciam as crianças. Se a minha fé em Deus e nos homens resistiu a isso, é porque resiste a tudo. Graças a Deus, foram revelações tardias. Nunca suportei também aqueles pais pedagógicos que, em nome da verdade, acham que não se deve contar às crianças a história do Menino Jesus. Como se os pais não existissem senão para dizer mentiras, como se educar não fosse senão mentir. Quando muito transijo – com pouca simpatia – na substituição pagã do Menino Jesus pelo Pai Natal. O cinema era o décor – a profundidade de campo – de onde saíam todas as maravilhas dos dias seguintes, já que, geralmente, acontecia antes de tudo o resto, no dia em que era conveniente que estivéssemos fora de casa, para não ver os preparativos do Natal. A minha mais antiga recordação vem dos cinco anos e tem como nome O Feiticeiro de Oz, que em 1989 fará 50 anos (a Portugal só chegou no Natal de 1940).

Esse filme, que continua a ser um dos «filmes da minha vida», esse filme de que já se tem dito, com carradas de razão, que é a mais portentosa metáfora de Hollywood (até se diz que todos os filmes posteriores contêm uma referência a The Wizard of Oz), foi paixão à primeira vista. Dorothy «Over the Rainbow». A passagem do sépia às cores. O Espantalho, o Homem de Lata e o Leão (sempre amei mais o Leão do que todos os outros). A Cidade-Esmeralda, o Feiticeiro, os «Munchkins», os sapatinhos de rubi, os chupa-chupas liliputianos. E a bruxa, aquela bruxa má, primeiro de bicicleta e, depois, soterrada, a seguir ao ciclone, só com os sapatos de fora. O único ciclone da minha vida – Lisboa, 1941 – misturou-se tanto com o do Kansas que já não sei onde começou um e acabou o outro. também dizem que aconteceu na vida real. Há quem jure que no dia da morte de Judy Garland um ciclone se abateu sobre Kansas. Assim deve ser. «De cada vez que vemos Judy passar para lá do arco-íris» - escreveu Denny Peary - «temos vontade de a avisar que é preciso ter muito cuidado.» Ela não teve. Só me pergunto se o cuidado a ter é com os ciclones que nos levam ou com os balões que nos trazem.

The Wizard of Oz está ainda ligado à minha primeira dúvida metafísica. Nesse Natal – o tal Natal de 1940 – o Menino Jesus deu-me o livro de L. Frank Baum, reeditado, em português. Tinha uma capa dura, amarela, onde estavam Dorothy (Judy Garland), o Leão (Bert Lahr), o Espantalho (Ray Bolger), o Homem de Lata (Jack Haley) e, a um canto, o Feiticeiro (Frank Morgan). E tinha uma cinta onde se dizia, mais ou menos, «O livro que serviu de base ao filme da METRO-GOLDWYN-MAYER, actualmente em exibição no cinema Éden». Não foi a descoberta da vocação publicitária do Menino Jesus que me fez suspeitar. Mas o excesso de precisão. Como é que, lá no Céu, a distribuir Feiticeiros de Oz por todo o mundo, o Menino Jesus acertava com o cinema de Lisboa? Mudava de cinta conforme os países e as cidades? Não sou capaz de reconstruir exactamente os fundamentos da dúvida, mas andavam à roda de tão particular localização. Lá me deram uma explicação qualquer (a omnisciência do Menino) e convenci-me. Admirei-O ainda mais depois de tal façanha. E essa capa ficou para mim como a prova suprema da existência divina, certamente mais convincente do que o argumento de Santo Anselmo.

No Natal de 41, foi The Thief of Bagdad. Sabu tomou o lugar de Judy Garland e Conrad Veidt o de Margaret Hamilton (a Bruxa Má).

O Natal de 42 foi o do meu heterónimo Dumbo, outra criatura já aqui convocada e que, desde essa altura, me comove tanto como comovia aquele general do 1941 de Spielberg. Passei a sonhar a cor-de-rosa e ia de maravilha em maravilha e de voo em voo: o voo dos balões no Feiticeiro; o voo de Sabu às costas do gigante no Ladrão de Bagdad; o voo de Dumbo, com as orelhas a fazer de asas.

A voar continuei, no Natal de 43, sem reparar que mudara de imaginário e dos campos então em conflito. O filme desse ano era alemão e chamava-se Münchhausen (Josef Von Baky, 43). Em Portugal, chamaram-lhe O Barão Aventureiro. Vi-o no Ginásio. Deve ter sido das primeiras vezes que fui ao cinema sem adultos, já que me lembro bem que o meu único companheiro era um amigo do colégio, da mesma idade que eu. Está-me ligado na memória a uma das minhas primeiras humilhações socias. Quando lá chegámos, a lotação estava praticamente esgotada e só havia lugares no Balcão de 3ª. Comprei os bilhetes e lá subimos até aos carrapitos, com ele muito calado. Antes do filme começar, olhando com ar desaprovador a sala, disse-me secamente: «E eu, habituado a Plateias e Balcões de 1ª, venho hoje para um Balcão de 3ª.» Engoli em seco. Afinal era a precoce manifestação de uma vocação. É, hoje, Embaixador de Portugal.

Mas o filme fê-lo esquecer a posição de classe, como me fez esquecer a mim o embaraço. Hans Albers – o Barão – tinha uma bola de cristal e voava de corte em corte e de prodígio em prodígio. Deu-nos uma lição de geografia e uma lição de astronomia. Passamos a seguir em mapas e em  colecções de selos os países por onde tinha andado o Barão de Münchhausen, que deixara os russos de boca aberta perante os poderes mágicos dos alemães, em contraste flagrante com o que no mesmo ano se passava, mas não entrava nessa história nem na nossa história. Rússia era a de Catarina, não era a de Estaline. Alemanha era a de Münchhausen, não era a de Hitler. Não me venham dizer que o cinema aliena.

Natais seguintes foram menos mágicos e mais religiosos. Passei-os com o Padre O’Malley (Bing Crosby, mais querubínico do que nunca) ora às voltas com um velho sacerdote rabugento (o genial Barry Fitzgerald) em Going My Way (Natal de 44) ora às voltas com uma freira sadia e sorridente (Ingrid Bergman) em The Bells of St. Mary’s (Natal de 46). Ambos foram realizados pelo mais romântico e mais céptico dos cineastas de Hollywood: Leo McCarey. Nessa altura, dei mais pelo romantismo e menos pelo cepticismo. Chorei muito com a chegada da velha mãe de Barry Fitzgerald no final do Bom Pastor (título português de Going My Way) e não percebi por que é que Bing Crosby e Ingrid Bergman não se casavam no final de Os Sinos de Santa Maria.

A vida-cinema ensinou-me que Going My Way é também um dos mais sinistros filmes sobre a solidão e que The Bells of St. Mary’s acaba com uma das mais equívocas lines de qualquer diálogo de Hollywood. É quando Bing Crosby se despede de Ingrid Bergman e lhe diz: «If you’re ever in trouble dial O for O’Malley.»

No fundo, é uma despedida equivalente à de Judy Garland do Espantalho quando se mete no balão e lhe diz: «I’m going to miss you must of all.» É sempre a mesma história, ficam sempre as mesmas saudades. Ao som de Irving Berlin e do White Christmas, cantado pela primeira vez noutro filme natalício, Holliday Inn (Mark Sandrich, 42) com Bing Crosby e Fred Astaire.

No cinema, como no Natal, tudo mudou para ficar na mesma. Louvados sejam.

João Bénard da Costa

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