31 de julho de 2012

Herr Arnes Pengar - Mauritz Stiller (1919) *****
The Kid - Charlie Chaplin (1921) ® *****
The Iron Horse - John Ford (1924) *****
Street Scene - King Vidor (1931) *****
The Ox-Bow Incident - William A. Wellman (1943) *****
Brute Force - Jules Dassin (1947) *****
Wagon Master - John Ford (1950) *****
God's Little Acre - Anthony Mann (1958) *****
Edipo Re - Pier Paolo Pasolini (1967) *****
The Formula - John G. Avildsen (1980) *****
Todake no Kyodai - Yasujiro Ozu (1941) ****
Duel in the Sun - King Vidor (1946) ® ****
Stalag 17 - Billy Wilder (1953) ****
Easy Rider - Dennis Hopper (1969) ® ****
Agoniya - Elem Klimov (1981) ****
To Live and Die in L.A. - William Friedkin (1985) ****
Requiem - Alain Tanner (1998) ****
Angelus - Lech Majewski (2000) ****
Casa de Areia - Andrucha Waddington (2005) ***
L'auberge Espagnole - Cédric Klapisch (2002) **
In Darkness - Agnieszka Holland (2011) **
Midnight in the Garden of Good and Evil - Clint Eastwood (1997) ® *

® Filmes revistos

26 de julho de 2012

A grandeza da verdadeira arte consiste em captar, fixar, revelar a realidade longe da qual vivemos, da qual nos afastamos cada vez mais à medida que aumentam a espessura e a impermeabilidade das noções convencionais que se lhe substituem, esta realidade que corremos o risco de morrer sem conhecer, e é apenas nossa vida, a vida enfim descoberta e tornada clara, a única vida, por conseguinte, realmente vivida, essa vida, que, em certo sentido, está sempre presente em todos os homens e não apenas nos artistas. Mas não a vêem, porque não a tentam desvendar.

17 de julho de 2012


O sonho do herói

“The Iron Horse”, que no fundo lá bem no fundo de si é um filme de amor, mais do que aquele amor entre Davy e Miriam que nasce ainda na infância e resiste ao tempo e à distância e ao esquecimento é o amor pela nação, pelo progresso, pelos justos, pela memória e pelos sonhos do pai de Davy, sonhador assassinado naquela serena e cândida noite invadida pela intempestiva e impetuosa aparição daqueles índios comandados por um branco impiedoso e usurpador com dois dedos numa mão que mais tarde voltará para Davy o enfrentar, épico do nascimento dos caminhos-de-ferro transcontinentais que um dia uniram a América, este e oeste, norte e sul, coisa que brota, como das mais veementes tempestades nocturnas brotam as trevas e a escuridão que assombra o homem, todo o patriotismo e todo o humanismo do cinema de Ford. É do negro, sim, do negro da noite e da morte e do assassinato que rompe o coração do homem e que torna homem o menino, que cospe ou verte toda a brutalidade e aspereza da acção como da quimera do homem que corre atrás dela e cai no fatalismo do destino para que anos muitos anos depois seja o seu filho, o tal tornado homem naquela noite terrível e fatídica que marca qualquer um e que o deixou sozinho no mundo, a lutar e a cravar os pregos no sólo americano e na história pela concretização da tal quimera um dia sonhada pelo seu pai e por tantos outros americanos.

Comum dos homens tornado herói pelo suor e pela força da fé no ideal, primeira aparição Fordiana de Lincoln, “The Iron Horse” (a ele dedicado) é coisa tão audaciosa quanto os mais audazes de Griffith ou de Eisenstein, é coisa tão brutal e tão monumental quanto a própria história, gloriosa como os mais gloriosos actos do Homem, Ford O cineasta americano, da forma e da história americana, cineasta maior que ousou filmar quase toda a história americana, urge dizê-lo, o tal que filmava westerns era o mais puro defensor dos pretos e dos índios, anti-racista e anti-capitalista, unificador de todas as diferenças e todas as raças, pois se “The Iron Horse” como em quase todos os filmes se mune dum herói, dum vilão e duma história de amor, à superfície muito à superfície, lá no fundo é coisa de união, é mais que tudo essa a mensagem (e o tal dos dois dedos outrora chefe dum bando de índios para depois ser dono de tanta terra e de seu nome Deroux, o tal que matou o pai de Davy, é a mais pura imagem do capitalismo e da usurpação humana), é a união que faz a força e é pela união que se luta ali, no fim a teremos, não só a união daquelas duas almas apaixonadas como a união política e das duas empresas de construção como a do caminho separado pelo desfiladeiro em que mais tarde Davy quase sucumbe pela malvadez e ganância do noivo da sua amada e a mais importante a do território americano. Coisa tão intensa e tão feérica quanto o romantismo angelical de Borzage ou a escuridão aterradora de Murnau, “The Iron Horse” filme do lirismo do homem, filme dos pioneiros dos caminhos-de-ferro que unificaram América, filme como todos os filmes de Ford de lei e ordem ou como aquele jornalista dirá no final do “Liberty Valance”: When the legend becomes fact print the legend. Ao “Liberty Valance” muita coisa poderemos similar pois se aí se auguraría o fim do western e se invocaría pela lei e pela ordem mais que em qualquer outro, já aqui Ford o tinha feito até porque o tal cavalo de ferro do título, assombro e pavor para a agnosia dos índios, foi o grande veículo do progresso e da unificação do território americano.
Ford O maior dos maiores.
“Angelus” do polaco Lech Majewski, o tal do “O Moinho e a Cruz” que estreou recentemente cá por terras lusas, é coisa repleta de luz e de cor, sátira alegórica e poética ao totalitarismo, coisa próxima, esteticamente, ao cinema rudimentar, simbólico e ritual de Parajanov, coisa arreigada num absurdismo similar ao de Veit Helmer ou ao do seu compatriota Piotr Szulkin ou até (este mais conhecido) ao de Kusturica, coisa paradoxal e excêntrica, metafísica e corrosiva, catastrófica, é uma alegoria cómica e mordaz da história polaca dos últimos cinquenta anos, caricaturas de Hitler e Stalin, coisa enraízada na pintura como arte de expressão e de protesto, ritos e crenças e alquimias numa estória arcaica e fantasiosa sobre a repressão e sobre a espiritualidade como recurso à crua realidade.

14 de julho de 2012

Fantasmas e encontros…

“Requiem” de Alain Tanner abre com a espera dum homem, no cais de Lisboa, na claridade do dia, a espera por um encontro ao meio-dia, mas como mais tarde o vendedor de jornais lhe dirá esses encontros costumam ser às 12 mas às 12 da noite, fala-se de fantasmas e de encontros com eles, é filme de um dia entre o tal meio-dia e a tal meia-noite, recheado de sol e de calor abrasador que abafa o homem, cidade deserta diz logo no princípio, percorremos todo o filme numa espera pelo fantasma desse encontro que virá no final - o Pessoa ansiado - às tais 12 da noite, mas até lá muitos mais virão, fantasmas do passado desse homem, estrangeiro que um dia ali viveu, homem perdido em busca de algo que lhe faz devanear entre o real e o sonho, ânsia desesperada e alucinada por uma nostalgia confusa e pelas respostas existenciais que a arte e os seus fantasmas lhe poderão dar. “Requiem”, filme de fantasmas e de encontros, filme de um homem numa procura constante do apaziguamento da alma, coisa onírica e próxima dum obscurantismo fantasmagórico que brota incessantemente a correria desenfreada daquele homem por uma Lisboa também ela fantasmagórica e o faz imergir na ambiguidade do onirismo e daqueles encontros fantasmagóricos que se cruzam com os reais. Enigmas e crenças a assombrarem o homem, nostalgia dum tempo perdido, traições que ficaram no vazio do esquecimento e que o onirismo e a crença nas respostas encontradas na arte ou na fantasmagoria do onirismo lhe possam trazer...

8 de julho de 2012


“God's Little Acre” verte aquela América mítica do Ford do “Tobacco Road” ou do “Grapes of Wrath” ou do Kazan do “Baby Doll” ou do “A Streetcar Named Desire” ou até desse portento que é o “Street Scene” do Vidor, “filho” da Broadway e do teatro, coisa imensamente enraízada à terra, ao interior do país, àquela América profunda dos anos 20 e 30 onde um palmo de terra e a agricultura eram a grande riqueza que um homem podia ter, onde o sonho do ouro cegava o homem e o fazia mover montanhas e neste caso cavar buracos ano após ano em busca do tesouro, do ouro aqui e no “The Treasure of the Sierra Madre” do Huston como do petróleo no “Giant” do Stevens, filmes de garimpeiros e sonhadores e destemidos, coisas do pós-western. Mas onde o filme do Huston se embrenha numa epopeia mítica da busca ao ouro e das suas consequências, “God’s Little Acre” imerge da comédia e do paradoxal para lançar uma tragédia negra e subversiva sobre a demência e a peculiaridade duma família, coisa próxima, portanto, do “Streetcar” ou do “Tobacco Road” onde se foca sobretudo a complexidade familiar.


Deus…

Talvez, e este talvez tem muita força, “God's Little Acre” seja o filme mais religioso de Mann e onde essa religiosidade abrupta oscila entre a ganância ao ouro e o desejo da paz familiar… obsessão de Mann que brota e rompe daquela propriedade repleta de buracos numa das mais hilariantes temáticas de Mann, coisa que só pretexta para filmar a instabilidade familiar e aqui é mais que isso já que toda aquela família parece saída do asilo mais tresloucado do mundo, são coisas intempestivas e irascibilidades que irrompem e brutalmente atordoam e abalam o seio familiar (seja ele qual for) para num caos o tornar. É aí que Ty Ty, o pai, se destaca ainda que a sua loucura seja a maior de todas pois ele é o tal que cava buracos à 15 anos em busca do ouro que supostamente o avô escondeu ali, ele é o tal que rapta o albino lá do sítio porque Pluto, o candidato a xerife (um “brutote” que gosta da filha mais nova), lhe diz que os albinos têm o poder de encontrar coisas. No entanto, no meio de toda aquela demência e absurdismo familiar, ele (o patriarca) tudo faz e tudo promete para não desagradar a Deus, volátil como as horas mais desesperadoras do homem em que tudo lhe passa pela mente, vai mudando o seu god’s little acre, que é como dizer o seu pequeno campo de Deus (ora, esclarecendo, é uma parte da sua propriedade - da do patriarca (grandiosa interpretação de Robert Ryan) - que foi por si oferecida ou jurada a Deus juntamente com tudo o que lá nascer), conforme lhe convém sempre com o ouro em mente, são credos e utopias e loucuras e cegueiras e coisas mais fortes que o homem...


Obsessões…

Das loucuras insanas do patriarca sedento de ouro imergimos na disfuncionalidade e na invulgaridade da família, traições e insinuações sexuais, irascibilidades e ímpetos constantes em que o pai tenta a todo custo sarar. Nota-se, como se notará mais tarde que o ouro a Deus pertence, que da negrura incessante e da impetuosidade constante de Buck para com a mulher e da agrura também constante de Bill não só pelo fecho do moinho como pelo seu desejo por Griselda (a mulher de Buck) algo trágico irá surgir e colmatar ou ofuscar toda a ideia e toda a obsessão pelo ouro. Ainda assim, e com o filme caminhando sempre para essa tragicidade adivinhada, “God's Little Acre” é no seu fundo uma comédia bucólica e psicológica (como a tudo o que é de Mann) onde reina a loucura e a sexualidade e a letargia e as obsessões e erraticidades quer amorosas quer religiosas.
King Vidor "Street Scene" (1931) aqui e aqui

6 de julho de 2012


Injustiçados…

“The Ox-Bow Incident” tem a intensidade e a asperidade e a implacabilidade dos mais duros e dos mais brutos do Ford ou do De Toth ou do Hawks, começa com a chegada e acaba com a partida de dois homens (um deles o grande Henry Fonda), abre com o mesmo plano e o mesmo enquadramento e o mesmo local que encerra (e o mesmo cão que se atravessa à frente na chegada e atrás na partida dos dois cowboys), mas no meio, bem dentro do meio desse monumento tão irascível e tão negro e tão imensamente feérico que é “The Ox-Bow Incident”, implode tudo e toda a tensão e toda a pulsão do mundo tal como Wellman a voltaria a implodir dentro daquela casa do “Track of the Cat” e arrasta durante uma hora e quinze minutos a inexorabilidade duma terrível sentença desde muito cedo decretada pela maioria daqueles homens. Corta-se a respiração e luta-se pela vida de três homens que logo sentimos serem inocentes, luta-se que é como dizer lutam sete daquela imensa falange de cowboys-civis cegos e sedentos de sangue e de vingança pela suposta morte dum rancheiro lá do sítio (Nevada, 1885). Volto a dizê-lo, corta-se a respiração e imerge-se no negro da noite e das trevas que a cegueira da vingança e da justiça pelas próprias mãos traz ao mundo, penetra-se no abafamento e na perpetuação desse abafamento do ar tais são as hesitações e as incertezas e os fantasmas e os gritos de demência e todos ele sedentos de sangue e de morte, irracionalidade e erraticidade a dominar o homem.

“The Ox-Bow Incident”, “Track of the Cat”, westerns tão bons e tão brutais quanto os melhores do Ford ou do Mann ou do Hawks, obras-primas marginais, esquecidos e injustiçados, coisas terríficas e selváticas que assombram o homem, “The Ox-Bow Incident” então é provavelmente o western mais aterrador e usurpador da alma humana, volátil e fugaz como as mais fugazes corridas de carros ou de motas, negro como os mais negros de Murnau, coisa feroz e irascível e veemente que brada pela lei e a ordem, que recusa tiranias e absolutismos de maiorias e impetuosidades repentinas. Não aos linchamentos e a tudo o que isso possa simbolizar, “The Ox-Bow Incident”, filme-irmão daquela que é a grande obra-prima de Lumet “12 Angry Men”, moralidade das moralidades - até o mais vil dos criminosos tem direito a defender-se e tem direito à justiça - a lei não é só umas palavras escritas no papel, faz parte da consciência do homem, a carta de Donald Martin diz tudo e tudo irá perpetuar na vida daqueles homens, será o peso da ceifadela daquelas três almas inocentes que todos (todos menos sete como perto do final diz Arthur Davies ao xerife) carregarão na consciência até ao fim das suas vidas.

Luz e contra-luz e sombras fantasmagóricas que tudo apavoram naqueles momentos aterradores daquela noite interminável para Martin e os outros dois, nada mais pode ser feito quando a maioria está cega e dominada pelo ódio e pelo desejo de vingança que dissemina todo o medo do mundo naqueles três homens, são rostos e corpos fulminados e vilipendiados pelos feixes de luz e pelas sombras da escuridão que nada mais fazem senão mostrar todo o medo e todo o ódio do mundo, é a luz do humanismo que pouco ou nada pode contra a escuridão do ódio e da vingança, é a justiça a perder-se na imensidão da intempestiva ânsia da morte e do castigo que tudo cega e tudo lança nas trevas da injustiça e do arrependimento. Máximo realismo, classicismo total.

Já não se fazem coisas destas em Hollywood, nada desta matéria e desta rugosidade terrífica e ensurdecedora que fez de Hollywood o centro do mundo do cinema, já não há destes raccords e destas découpages e destes planos e enquadramentos e movimentos de câmara que tudo dizem e tudo mostram sem recorrer à “pornografia” das imagens e dos movimentos que tudo querem mostrar e nada mostram porque imergem no vazio e na inutilidade do seu cinema e dos seus embelezamentos, mil Finchers ou mil Nolans ou mil Spielbergs e nunca assim chegariam a Wellman, à negrura e à irascibilidade e à implacabilidade e à dureza e à forma da sua câmara e do seu cinema. Wellman, um dos grandes esquecidos e injustiçados…

4 de julho de 2012

“Todake no Kyodai”, filme de 41, Ozu pré-guerra onde ainda não se pensava no sentimento de mudança social e cultural dum Japão dilacerado pelas bombas e pela morte às carradas como vemos no “Higanbana” ou no “Sôshun” ou no “Primavera Tardia” ou noutros tantos que Ozu fez depois da guerra, é a estória do pós-morte do patriarca duma grande e abastada família como todos os seus filmes são pós-qualquer coisa e de como as pessoas têm de lidar com esse pós e com a amargura da vida e o fardo que a velhice e a juventude acarretam. Depois da morte vem o que resta ou quem ficou, neste filme fica a viúva e uma filha mais nova, há sempre um filho que ainda não se casou, que ainda está ligado aos pais e que é também um fardo para os outros, portanto, ela e a mãe irão estorvar os irmãos e as suas famílias. De casa em casa que é como dizer de irmão em irmão ou para o caso da mãe de filho para filha, Ozu imerge na perversidade e na exasperação humana, moralidade das moralidades Ozuianas, mãe é mãe mas parece que os filhos se esquecem disso quando crescem e têm os seus próprios filhos e a sua família, tornam-se intolerantes e incompreensivos, isto é tudo a que Ozu sempre voltou uma e outra vez, sem negruras ou tormentos, só a vida, só o realismo, só as pequenas coisas que nos assombram no quotidiano. São coisas simples e voláteis que percorrem caminhos da serenidade e vertem da candura humana toda a tristeza e toda a melancolia da mudança e das contrariedades da vida, são contos-lamento, brutalidade da implacabilidade da morte mas mais importante, da vida e das coisas da vida, porque se é a morte que tudo causa é também a vida que tudo abrupta e tudo rompe para depois tudo sarar e tudo resolver. Ozu, um dos maiores de sempre.

2 de julho de 2012


De nórdico para nórdico, de Sjöström para Stiller, ancoro nas neves de Solberg, na Dinamarca, levado, levado, sim, pelo filme sueco do finlandês Mauritz Stiller (1883-1928), Herr Arnes Pengar. Ano de estreia: 1919 (18 de Setembro). Tradução conhecida: O Tesouro de Arne. Mas é tradução do conto de Selma Lagerlöff em que se baseou (publicado em 1904) já que o filme nunca teve distribuição em Portugal, nem em salas de cinema nem na televisão. Meu particular motivo de orgulho: fui eu quem o trouxe a Portugal, e fui eu, com a preciosa ajuda de Alberto do Nascimento Regueira, quem adquiriu a cópia, hoje na colecção da Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema.
Como é remota a possibilidade dos que me lêem conhecerem o filme, sou forçado a ser vagarosamente pedagógico, antes de ser arrebatadamente apaixonado, já que vos vou falar de um dos filmes que mais amo.
Nesse ano de 1919 - ano de Broken Blossoms e True Heart Susie de Griffith, ano de Male and Female de Cecil B. DeMille, ano de Blind Husbands de Stroheim, ano de Blade of Satans Bog de Dreyer, ano de Satanas de Murnau, ano de Die Spinnen de Fritz Lang, ano de Die Puppe e Madame Dubarry de Lubitsch, ano de Das Kabinett des Dr. Caligari de Robert Wiene (que ano, Meu Deus!) - nesse ano de 1919, dizia eu, apesar do que já se passava em Hollywood e em Berlim, os estúdios da Svenska, em Estocolmo, eram o maior alfobre de obras-primas do planeta. Eram-no desde 1917, sê-lo-iam até 1921.
Basicamente, essa posição cimeira devia-se a quatro homens: o produtor Charles Magnusson, os realizadores Viktor Sjöström e Mauritz Stiller e o director de fotografia Julius Jaenzon.
Sjöström já vo-lo apresentei. Stiller, que para o caso mais importa, era um judeu, de origem polaco-russa (Mowscha Stiller, era o vero nome dele) nascido em Helsínquia, quando Helsínquia dos russos era. Órfão aos quatro anos, começou a estudar para música (violino) e diz-se que, desde muito novo, cultivou um lado snob e requintado, que lhe teria valido a alcunha de «grão-duque». Em 1899, aos 16 anos, não lhe apeteceu nada servir nos exércitos do Czar. Fugiu para a Suécia. Conhecia os seus clássicos, sabia o seu latim, sabia até muitas outras línguas. Fez-se actor, depois encenador, e obteve alguma fama com uma adaptação de Tolstoi. Em 1911, Magnusson chamou-o para a Svenska. Primeiro, como actor, depois, como realizador, carreira em tudo idêntica à do antecedente Sjöström. E, como ele, estreou-se como realizador em 1912, Stiller tinha 29 anos, Sjöström 33. Sjöström precedeu-o em grandes êxitos mundiais (Terje Vigen de 1916 e Os Proscritos de 1917). Por essa altura, Stiller fazia comédias pré-lubitschianas (a série dos Thomas Graal). Mas, de 1919 a 1924, Stiller tornou-se tão célebre como Sjöström, graças, sobretudo, a Herr Arnes Pengar (O Tesouro de Arne), Erotikon (1920), Gunnar Hedes Saga (A Casa Solarenga, de 1922) e Gösta Berlings Saga (A Lenda de Gösta Berling, de 1924).
Por estes anos, Hollywood pagava e apagava a concorrência. Aconteceu com os alemães (Lubitsch, Murnau, Dupont, Leni), aconteceu com os suecos. Lubitsch chegou à América em Outubro de 1922, Sjöström em Janeiro de 1923.
Stiller foi mais reticente às propostas. Mas, em Agosto de 1925, para lá foi, também, sob uma condição. Que o contracto não o envolvesse só a ele, mas englobasse a actriz que descobrira em A Lenda de Gösta Berling. Louis B. Mayer, o homem da Metro, foi relutante. «In America, men don’t like fat women». Mas dessa, gostaram. Chamava-se Greta Garbo. E se Greta Garbo, contrapeso na bagagem de Stiller, teve em Hollywood o destino que se sabe, o realizador, inicialmente pago pelo triplo do cachet dela, nunca se adaptou. Sjöström, no início, ainda foi muito bem tratado. Com Stiller tudo correu sempre mal e nem sequer o deixaram terminar o único filme que lá fez com «a divina» (The Temptress, de 1926). Em 1927, doente e destroçado, regressou à Suécia, onde morreu no ano seguinte, aos 45 anos. Teve direito a um ramo de flores da Garbo cada ano, no seu túmulo, e a mil lendas sobre a relação Pigmaleão-Galateia, que entre eles teria existido. Mas, se teve direito, não há direito que seja sobretudo lembrado por causa dela. Garbo, por muito admirável que seja em Gösta Berling ou nos planos de The Temptress em que foi filmada por ele, nem sequer é a sua melhor mulher. A melhor mulher de Stiller chamou-se Mary Johnson e é através de Mary Johnson, essa que n’O Tesouro de Arne se chamou Elsalill, que mergulho, finalmente, na terra gelada e na água ardente do mais belo dos filmes.
De todos os personagens para que até aqui me puxou a conversa, é a mais esquecida. Procurem nos melhores dicionários, nem o rasto lhe encontrarão. E, no entanto, mesmo quando eu já for velhinho, acabado de morrer, se me olharem bem nos olhos, continuarei a dizer que é uma das dez mais fabulosas mulheres que o cinema me fez aparecer. Porque é que toda a gente se esquece daquela a quem, em 1919, chamaram a «Lillian Gish sueca?» Possivelmente, por ser sueca, como hoje teríamos esquecido Greta Garbo ou Ingrid Bergman, se da Suécia nunca tivessem saído. Possivelmente, porque deixou de filmar muito nova, em 1931. Possivelmente, porque nunca ninguém viu (eu nunca vi) Haus der Lüge de Lupu Pick (baseado em O Pato Selvagem de Ibsen) ou Geschlecht in Fesseln (Sexos Encadeados), de Dieterle, filmes que fez na Alemanha entre 1925 e 1928. Mas hoje, como há 75 anos, valem por inteiro as palavras de Louis Delluc, quando viu o filme e a viu a ela: «Mary Johnson. Le jour se lève… Elle a dix-sept ans et nous en avons aussitôt dix-huit. C’est le “trésor” du Trésor d’Arne.»
É a meio da segunda bobina do filme que ela aparece. Ao princípio, uma legenda fala-nos da lendária tempestade de 1574, que, durante meses, isolou a Suécia do mundo exterior. Depois, na primeira das imagens do mais belo trabalho de Julius Jaenzon, vemos árvores. É um plano relativamente breve (quase todos o são, neste filme de 80 minutos e 800 cenas) mas tão cerradamente enigmático que, ainda sem nada sabermos da história, «sentimos» o signo sob o qual se irá processar (amor e morte, lenda e mito). Três cavaleiros, um dos quais é Sir Archie (Richard Lund, celebérrimo actor de teatro sueco), erram na neve, sem aparente destino ou objectivo. Vestem-se todos de negro e, no branco da neve, a «mancha da morte» parece completar-se. Conspiraram contra o rei João III e são perseguidos. Em breve serão presos, encarcerados numa fortaleza sinistra, onde assistimos a um ambíguo jogo. Aparentemente, distraímo-nos (filme de aventuras?) até surgir, num prodigioso trabalho de montagem (alternância de longos planos com breves close-up) a primeira das muitas mortes do filme, a de um guarda, vítima da própria arma. E, paradoxalmente, a morte visível (começo da aventura ou da «acção», com a fuga dos prisioneiros) apaga as primeiras imagens, até que o «cá fora» (visto num assombroso enquadramento através da frecheira do canhão) nos faz voltar ao mesmo tom opressivo que «lá dentro» não tínhamos sentido.
Com grande lentidão, muitas aberturas e fechos em íris e novos admiráveis grandes planos, seguimos o percurso sanguinário dos cavaleiros: assalto a um velho casal, o pescador que tinha um cão preto como um lobo e que conduz os foragidos a casa de Arne, o pastor protestante, que escondia em sua casa um tesouro que amaldiçoa quem o detém. Uma série de panorâmicas, e conhecemos a família toda. Até à neta dele, Berghild (Wanda Rothgardt) e até Elsalill, irmã de leite dela. «Le jour se lève…» Nunca as vi, tão louras, tão assustadas, com os vestidos bordados até aos pés, que não me lembrasse do quadro de Cornelius de Vos, As Filhas do Artista, que vi em Berlim. Nem faltam as cruzes, as romãs, as golas de rendas. E se Berghild é uma criança, Elsalill, criança também, tem o olhar de quem sempre soube que aquele momento ia acontecer, olhando com os olhos azulíssimos os olhos escuríssimos de Sir Archie. Como muito mais tarde dirá: «Sir Archie, Sir Archie, porque é que pensar em si me faz pensar na morte?». Ainda não sabemos da maldição do tesouro e já sabemos que ela está marcada e que, como ele, carrega uma antiquíssima danação.
Depois, é a festa na taberna. Depois, as chamas vistas de longe, na casa de Arne. E, como em The Searchers de Ford, que este filme também me faz lembrar, não é preciso lá chegarmos para percebermos que todos foram mortos e o tesouro roubado. Só Elsalill sobreviveu e, aparentemente, não se lembra de nada. O pescador e a mãe tomam conta dela.
Até que um dia (quanto tempo depois?) os cavaleiros regressam, transfigurados e sem que ninguém os reconheça. Mas entre ela e Sir Archie, que tanto amaldiçoou, começa uma estranhíssima história de amor, sem que nem nós nem Sir Archie saibamos ao certo de que é que ela se lembra, o que é que ela sabe.
Mas sabe que a morte tomará conta de tudo e que o amor, como os olhares e as palavras, mais não faz do que reflecti-la. Tudo se passa entre os rostos (voltamos sempre aos grandes planos), entre o medo e o espanto de tão grande destruição e o medo e o espanto de tão grande harmonia.
E a sequência mais inolvidável do filme é aquela em que Elsalill, levada pela mãe do pescador, narra aos assassinos o que eles tão bem como ela e como nós conhecem. Só nesse momento, vemos em flashback como todos foram mortos e sobretudo como foi morta Berghild. Mas deixa de fazer sentido separar aparições e memórias (transparências e sobre-impressões) do que pertence a um só e comum reino. Não é só o passado que Elsalill revê no seu fabuloso racconto: é a morte futura dela, é a morte de Sir Archie, é a morte de todos. «Foi Deus quem te trouxe», diz Elsalill a Sir Archie. Deus ou o Diabo? Porque, quando Elsalill vê o tesouro nas mãos dos assassinos e tem a prova de que foi Sir Archie quem lhe matou a família, pede-lhe que fuja, antes de o denunciar. E cada vez mais se confundem um no outro, até os cavalos se afundarem na neve e até aparecer o navio-fantasma em que nem um nem outro navegarão. E nada há mais belo do que o plano em que o peito de Elsalill atravessa a espada, sem se saber se Sir Archie a usou como escudo ou se é ela quem o protege da morte.
Há ainda uma sequência celebérrima (a mais célebre do filme): o enterro de Elsalill na neve, com o povo todo seguindo o caixão, no «número de ouro» de uma movimentação que Eisenstein recriou no final da primeira parte do Ivan.
Mas se é uma sequência belíssima, por mim preferia ter ficado na morte de Elsalill - Mary Johnson. Porque é o momento supremo da magia deste filme entre todos mágico. E porque é nesse plano que os dois temas maiores de Herr Arnes, o tesouro e a maldição, se fundem num só. Só nesse momento Sir Archie detém o tesouro, só nesse momento os dois amantes são simultaneamente dourados e malditos. E as neves derretem-se, finalmente, e finalmente o navio pode fazer-se ao mar.
E nunca mais ouviremos, como neste filme mudo, o duplo vocativo «Sir Archie, Sir Archie», como se o primeiro apelo fosse ao assassino e o segundo ao amante. Ou rigorosamente o inverso.

João Bénard da Costa