31 de outubro de 2012



Vinte anos depois desta obra de 1925 se ter estreado em Portugal (no Odéon, a 31 de Janeiro de 1928), lembro do mau pai me dizer que The Big Parade era o melhor filme jamais feito. Ele, que estivera nas trincheiras em 1917, invocava a experiência própria para garantir que jamais alguém dera a angústia específica do tempo delas – e do tempo nelas – como King Vidor na sequência nocturna da Batalha de Belleau. Jimmy (John Gilbert), Bull (Tom O’Brien) e «Slim» (Karl Dane), os três amigos da «company of buddies», esperam, nesse buraco, ordens não sabem bem para quê nem porquê. De vez em quando, um superior, escondido num buraco ao lado, arrasta-se até eles (entra sempre pela direita) para mandar qualquer coisa: silêncio, que não risquem fósforos, que não se mexam. Mais frequentes do que as aparições dele (escuríssimas e reptilíneas) são os clarões na noite dos very light alemães ou das rajadas de metralhadora que disparam (estão mesmo em frente, a uma centena de metros, enterrados em trincheiras iguais). Só os cigarros (motivo recorrente deste filme) ajudam a passar os minutos ou as horas dessa situação «de frente». A dada altura, o superior surge de novo para mandar que um deles tente chegar ao canhão vizinho e abata os que o accionam. «Slim» vale-se de uma superioridade que tinha conquistado num episódio anterior e cómico (The Big Parade é também uma antologia de slapstick) para partir, ele. Os outros recusam e é ambíguo se os três querem ser heróis, ou se preferem tudo a ficar parados, à espera. Por proposta de «Slim», a coisa resolve-se como se deve resolver entre gentlemen: à sorte. O processo não é muito senhoril, mas vai com o feitio de «Slim»: quem cuspir mais longe e mais certeiro é o «I am it». Como era óbvio, «Slim» ganha. E vai. Dura minutos ou horas a espera dos outros, a tentar perceber, por cada ruído, se «Slim» triunfou ou falhou a missão? Sei que são minutos, mas sei que são dos minutos que nunca mais acabam. Jimmy não consegue suportá-los. Berra pelo amigo, mexe-se como fera enjaulada, levanta a cabeça para espreitar. Por fim, desobedece a todas as ordens («Quem faz a guerra? Ordens ou homens?») e parte no encalço dele, para o descobrir morto, usando como troféus inúteis (escalpes?) capacetes de alemães que matara pelo caminho.
Quase vinte anos passaram, desde que eu ouvi esta história (que não corresponde a nenhum dos momentos mais célebres de The Big Parade) e a minha própria visão do filme, em Maio de 1965, na histórica retrospectiva de cinema americano que o Dr. Félix Ribeiro organizou na salinha dos Restauradores, junto ao «Galo», dos tempos em que havia «Galo». Depois, revi-o várias vezes ou em pobres cópias de 16mm ou, um dia, na América, na luxuosa versão restaurada por Kevin Brownlow em 1988, com Carl Davis e uma orquestra imensa a acompanhá-lo. Influenciado ou não, continuo a pensar que o meu pai tinha tanta razão como o pai de Sacha Guitry. A guerra, para mim que nunca a fiz, é essa noite nas trincheiras ou é o dia que a precedeu, quando as tropas americanas avançam no Bosque de Belleau que, pouco a pouco, se transforma de tudo o que se associa à palavra bosque numas raras árvores calcinadas e dispersas. A sensação que me fica é muito semelhante à que me provoca o «Guerra, guerra» do I Acto da Aïda, pouco antes do «Ritorna vincitor»: atingir o cúmulo do realismo pelo cúmulo do artifício. Mas não foram as marchas e as canções («You’re in the Army, now») o que convenceu o «menino de sua mãe» que era Jimmy a oferecer-se como voluntário para uma guerra de que tomou conhecimento no barbeiro, com a cara tapada pela toalha?
«Silent music», foi o que Vidor disse ter procurado com este filme. E a prodigiosa combinação entre o que antigamente se chamava mise-en-scène, com efeitos de montagem que nada devem aos de Eisenstein, permite a orquestração global dos movimentos físicos de que as «paradas» são o apogeu, com função semelhantes à das «marchas» na ópera. Penso na primeira dessas paradas, quando o batalhão de Jimmy chega a França. A primeira fila do regimento avança para a câmara, em plano médio. Traveling para trás, e, entre centenas de homens, destacam-se apenas cinco ou seis, em plano americano. Depois, sem corte, segue-se a visão de outra fila de homens (sempre cinco ou seis rostos, em plano americano ou em grande plano), depois outra e outra. Sentimos tanto a presença invisível dos soldados perdidos na profundidade de campo, como a das cinco ou seis caras visíveis. Nenhum militar sai do plano, como numa desfilada tradicional, nem mesmo quando se afasta da câmara. O que vemos são indivíduos mas indivíduos inseridos num colectivo. É a guerra no mais abstracto e no mais concreto, no mais mítico e no mais dramático.
Volto onde o meu pai me deixou. «Slim», o homem que ensinou Jimmy a fumar e a trincar um bolo duro, morreu, sem sequer poder dizer adeus ao amigo. Desesperado, Jimmy prossegue a missão do outro. E cai numa trincheira alemã, onde, logo depois, cai também um soldado inimigo, provavelmente aquele que matou «Slim». Jimmy, possesso de ódio, tem-no à mercê. Encosta-lhe a baioneta à garganta. Mas a aflição do outro, o medo do outro, detêm-no e impedem o assassinato a sangue quente. Jimmy nem repara que o alemão está ferido, mortalmente ferido. Por gestos (neste filme de alemães e americanos, ou de franceses e americanos, ninguém se entende mas todos se percebem) o outro pede-lhe um cigarro (sempre os cigarros). O plano fica e fica (deve demorar, sem qualquer movimento, dois ou três minutos) sempre a enquadrar os dois em plano médio. Até que do cigarro na boca do alemão deixa de sair fumo e percebemos – e Jimmy percebe – que o soldado morreu. O plano dura ainda o suficiente para que a presença do cadáver nos braços de Jimmy seja quase obscena.
Foi uma cena n vezes copiada e, em certos casos (por exemplo em All Quiet on the Western Front de Lewis Milestone) com intuitos pacifistas que também se atribuíram – a meu ver erradamente – a King Vidor. Mas o que mais me surpreende nela não é a retórica do «inimigo feito ser humano». É a rima perfeita entre esse plano e outro, igualmente longuíssimo, lendariamente conhecido como a sequência do chewing gum, justamente uma das mais celebradas de The Big Parade.
Passa-se em Chantillon, onde as tropas americanas descansaram um pouco, entre Jimmy e Mélisande (Renée Adorée), o cerne do grande filme romântico que The Big Parade também é. De noite, à porta de casa de Mélisande, por quem Jimmy perdidamente se apaixonou, este, que não lhe consegue explicar quanto a ama, dá-lhe uma pastilha elástica. Enquanto chupa a dele e puxa os fios da boca, ela, que nunca viu tal coisa, engole-a. Debalde, tenta Jimmy ensiná-la. Quando lhe abre a boca, já não está lá nada. Só o espaço para os beijos, os primeiros beijos deles, a que a história da pastilha elástica serviu de prodigiosa introdução. Por alguma razão, a duração e fixidez desses planos (o do chewing gum e o da morte do alemão) são aproximáveis e inusitadíssimos para as convenções da época. Por alguma razão, ambos se centram na boca e na oralidade (a pastilha elástica, o cigarro). Por alguma razão, dois corpos os ocupam das duas vezes. Por alguma razão, a incomunicabilidade linguística é tão forte num como no outro plano. Qual razão? A que dá razão à radical mudança entre o Jimmy do início e o Jimmy final, a que explica a transfiguração do protagonista. Na sequência do chewing gum, Jimmy descobriu o sexo, coisa que sequer jamais pressentira com a fútil namorada americana do princípio do filme. Na sequência com o alemão, Jimmy descobriu a morte, para além da histeria que a morte do amigo lhe provocara. Esses dois momentos ficaram e ficaram e determinaram o «milagre» final, tão próximo dos «milagres» de Murnau ou Borzage. Refiro-me ao reencontro, no fim da guerra, de Jimmy e Mélisande, quando esta o vê, de muito longe, no alto da colina, e corre para ele como se sempre soubesse que ele ia chegar.
Jimmy perdeu uma perna na guerra. Para ele, a guerra acabou no dia em que voltou à cidadezinha de Mélisande e não a achou mais. Antes, muito antes, tinha tido lugar a famosa despedida da rapariga. As tropas americanas partem para a frente e Mélisande, sozinha nos bosques, só tarde se apercebe do que lhe vão levar, de quem lhe vão levar. Durante «séculos» (outra vez) procuram-se um ao outro na confusão do regimento que se vai e dos franceses que se ficam. Travelings infinitos acompanham a incessante corrida dela, ao longo da parada de carros militares. Até que, finalmente, Mélisande descobre Jimmy num camião que já está em movimento e Jimmy descobre Mélisande em movimento para o camião. Jimmy salta e o beijo deles também nunca mais acaba. Os colegas puxam-no, e Mélisande agarra-se à perna dele, agarra-se depois à corrente do carro, como se o fio que os une se não pudesse quebrar mais. Até que acaba por cair. De dentro da carripana, Jimmy atira-lhe tudo o que tem à mão. A última coisa é um sapato. E é a esse sapato que Mélisande fica agarrada, a chorar, ponto perdido na profundidade do campo aberta pela marcha do camião.
Metaforicamente, é nessa sequência que fica a perna de Jimmy, a perna sem a qual volta da guerra. No regresso à América, essa amputação domina a personagem e o reencontro dela com a mãe e a antiga namorada. Mas quando reencontra Mélisande, recupera, com a alma toda, o corpo todo. Renasce, ressuscitado.
Lembramo-nos então que, quando se conheceram, Jimmy tinha um barril enfiado na cabaça e só através de um buraquinho a viu em cache, a ela e à vaca dela. Divertida com a estranha visão daquele desajeitado soldado, Mélisande segue-o e surpreende os colegas dele, nus, a tomar um duche (o barril destinava-se a esse improvisado banho). Nenhuma vergonha dela, que continua a rir, toda a vergonha dos homens, assim surpreendidos. Em The Big Parade, os homens sem rosto levam muito tempo a destaparem-se e cabe às mulheres revelá-los. Como lhes cabe a elas (e muito haveria a dizer sobre o paralelo entre a mãe de Jimmy e Mélisande) tomar as iniciativas físicas e transformar os fios em laços.
Como sempre, em Vidor, a situação dramática (neste caso, a guerra) gera a situação lírica, que necessariamente inclui todos os elementos dramáticos, sem os quais, como disse Shelley, só se conseguem «bad lyrics and worse dramas». E The Big Parade, drama admirável e lírica incomparável, está para o cinema como a Ode to the West Wind está para a literatura. O milagre da transfiguração.
 
João Bénard da Costa

1 de outubro de 2012

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