22 de dezembro de 2017

Últimos filmes vistos, duas coisas primorosas, tempo do mudo… ápice do cinema, sumptuosidade total… actualíssimos mas mais que isso, coisas que hoje em dia não se fazem nem há audácia ou destreza nem competência para tal porque o cinema se direcionou para outro caminho. Um registro do que me pareceram:



Regeneration do Walsh é uma fábula ou um conto moral a que tantos cineastas foram “beber”… é provavelmente um dos primeiros filmes de gangsters e um portento quer na narrativa quer no ritmo da acção. Tragédia (como também o é o outro filme), mutação das almas e do ser, a fisicalidade ou a sua mutação que rompe fronteiras (e/ou classes sociais)… a história já é batida nos dias de hoje, conta a história de Owen, um garoto que irá crescer e se tornar homem, inserido num ambiente familiar disfuncional (pai bêbedo e que “arreia” na mulher a “torto e a direito” - mais tarde, já homem, salvará um bebé em condições semelhantes… ironia das ironias, tudo não faz mais senão parte da “regeneration” do título) e de miserabilidade que, ainda em tenra idade, foge do meio/família para iniciar o seu percurso em direcção à criminalidade. No imo desta história de Walsh está a efabulação na sua “regeneration”, na moralidade e no amor donde esta resulta bem como na tragicidade que irá despontar no final. Owen é, talvez, um tipo de personificação da Maria Madalena (ou Madalena arrependida) da Bíblia, ou dum filho pródigo que depois de “mergulhado” no pecado ou, neste caso, no mal (e aqui representado pelos gangs, pela máfia ou coisa parecida) retorna a “casa” – o bem neste caso – numa regeneração impulsionada pelo amor e pela candura de Marie, ainda que para isso seja posto à prova numa situação de lealdade e de “retribuição” para com um dos antigos companheiros. A grande moralidade do filme de Walsh reside nessa mesma “regeneration” do título do filme, na possibilidade do mal voltar a ser bem e de que ninguém está completamente “perdido”. Nessa narrativa do percurso do miúdo que se tornou homem e chefe dum gangue como resultado do meio ambiente (e social), emerge a plasticidade dos personagens e as sombras do mal para serem ofuscadas pela luz do bem.



Mat, ou Mãe, de Pudovkin revela-se-nos ainda mais negro que o filme de Walsh, aqui a tragicidade é total e brutal. Filme obrigatório onde Pudovkin (eternizado ao lado de nomes como Eisenstein, Dovzhenko, Barnet ou Vertov) inova nas técnicas de montagem e nos ângulos de câmara, Mat é a história duma mãe que enfrenta a miserabilidade e a crueldade do feudalismo imperial (ou czarista) russo (ano de 1905) imerge nas sombras do medo e da repressão do poder sobre o povo/proletariado… Pudovkin retrata-o bem naqueles primeiros minutos iniciais, a bebida é o escape para os resignados, o primitivismo possui-os e a frieza ou a crueldade ou a dureza com que são tratados pelos “senhores” espelha-se no seio familiar e na forma como se trata a mulher, as resignadas. Mat parte duma greve laboral falhada e denunciada (está-se no epicentro da transformação política e social marxista que culminaria nas revoluções de 1905 e 1915) que resulta na morte do pai de Pavel Vlasov (o filho), reacionário e opositor do regime que participara dessa mesma greve. Perseguido, denunciado pelos “resignados” (os fura-greves que independentemente da classe social ainda continuam obedientes e fiéis ao poder), a mãe do título, numa tentativa de salvar o filho, entrega-o e “condena-o”, como mais tarde se “condenará” a si própria naquilo que Pudovkin nos mostra ser uma evolução da tomada de consciência das classes ou da classe operária. Mat nada mais é que um retracto da revolução falhada de 1905 pelo olhar dessa Mãe representativa de toda uma classe social, uma reflexão sobre a consciência (a obtenção desta) ou o surgimento da urgente sublevação duma classe social (proletariado) face ao imperialismo e à sua opressão/tirania como coisa necessária e iminente para a sobrevivência deste… Obrigatório.

29 de novembro de 2017

Filmes vistos a registar:

(1937) The Awful Truth - Leo McCarey
(1964) Matrimonio all'italiana - Vittorio De Sica
(1973) Una breve vacanza - Vittorio De Sica
(1967) Da Uomo a Uomo - Giulio Petroni
(1964) Nikutai no mon - Seijun Suzuki
(1956) Mio figlio Nerone - Steno
(1956) 7th Cavalry - Joseph H. Lewis
(1952) Androcoles and the Lion - Nicholas Ray
(1955) Run for Cover - Nicholas Ray
(1958) Wind Across The Everglades - Nicholas Ray
(1978) La Chambre Verte - François Truffaut
(1985) Sans toit ni loi - Agnès Varda
(1961) Paris Blues - Martin Ritt
(1987) Oci Ciornie - Nikita Mikhalkov
(2016) Café Society - Woody Allen
(2013) Krugovi - Srdan Golubovic
(1990) Mo' Better Blues - Spike Lee
(2014) Torneranno i prati - Ermanno Olmi
(1963) I Fidanzati - Ermanno Olmi
(2011) Il villaggio di cartone - Ermanno Olmi
(2014) The Look of Silence - Joshua Oppenheimer
(2009) Tong dao - Wang Bing
(2007) La masseria delle allodole - Paolo e Vittorio Taviani
(1990) Korczak - Andrzej Wajda
(1961) Accattone - Pier Paolo Pasolini
(1968) The Sergeant - John Flynn
(2003) Los Angeles Plays Itself - Thom Andersen
(1977) Hitler, ein Film aus Deutschland - Hans-Jürgen Syberberg
(1982) Parsifal - Hans-Jürgen Syberberg
(2015) Rak ti Khon Kaen - Apichatpong Weerasethakul

Revisões:
(1929) Chelovek s kino-apparatom - Dziga Vertov
(1964) Bande à Part - Jean-Luc Godard
(1965) Pierrot le fou - Jean-Luc Godard
(1975) Benilde ou a Virgem Mãe - Manuel de Oliveira
(1963) Acto de Primavera - Manuel de Oliveira
(1968) Teorema - Pier Paolo Pasolini

17 de setembro de 2017



O silêncio das trincheiras…

Em Torneranno i prati de Olmi somos confrontados com o silêncio ensurdecedor e abrupto e com a tranquilidade apavorante numas trincheiras da primeira guerra mundial. Olmi homenageia o seu pai e faz do silêncio um meio aterrador e angustiante para aqueles soldados italianos imersos no medo, na febre, na fome e no frio da imensidão da neve gélida que cobre todo aquele vale e aqueles montes. A elipse de toda uma guerra, de toda uma angústia e pavor aterrorizante dá-se bem naquele início ao som dum canto dum soldado esperançoso que lá para o final recusa esse mesmo canto justificando a ausência de felicidade no coração “Para cantar precisa estar feliz. E se não tem o coração feliz, ninguém te escuta.”. Olmi filma a tragicidade e a brutalidade duma guerra, incidida nas trincheiras onde o silêncio, a espera e a morte caminham lado a lado com a serenidade que assombra e atormenta a alma humana. Mais tarde virão os tiros dos canhões e dos morteiros, as mortes e o horror da guerra a interromper essa tranquilidade e o silêncio das trincheiras…

Torneranno i prati é um filme-lamento onde o silêncio faz mais barulho que o som estrondoso dos canhões e dos morteiros... as trincheiras dos austro-húngaros não estão longe mas nunca as vemos, não interessam… o filme de Olmi é uma glorificação daqueles soldados italianos entrincheirados que resistem e esperam (uns esperançosos outros resignados) pelo fim da guerra ou pela morte que os assombra naquela e noutras tantas noites. O silêncio é angustiante e Olmi filma-o quase sem cor ou numa saturação negativíssima dentro das trincheiras para lá fora filmar a serenidade do vale imerso na neve num tom azulado. Na espera, nessa noite silenciosa e serena que aterroriza a alma daqueles soldados, um major traz novas ordens, é preciso usar um posto de observação avançado e estabelecer novas comunicações pois a usada está na escuta do inimigo, é preciso voluntários mas o caminho é a descoberto…

Delírios da febre se misturam com o medo e com a angústia de quem sente a morte bem perto… a febre que assola mais de metade dos soldados, mesmo o próprio tenente que mais tarde renuncia ao cargo para recuperar a dignidade, as novas ordens são criminosas como lhe diz ao major bem cedo, são suicidas, é como enviá-los para a morte… morte que virá e assombrará o novato que fica no lugar do tenente, morte que irá pesar no sargento (“tudo é culpa minha”) que ordena a fila de homens na espera dum ataque de infantaria que não chega e ao invés os canhões e os morteiros matarão alguns daqueles soldados, morte que paira sobre todo aquele vale…

Em Torneranno i prati não há comoção, não há clímax nem nada que se pareça, há serenidade (como nos filmes de Ozu) e resignação num lamento sobre a guerra e a morte, sobre o esquecimento e a sua reflexão, sobre a angústia do momento… talvez o melhor filme que vi este ano!

4 de setembro de 2017


Parece-me que em Sans toit ni loi Agnès Varda assume toda a rebeldia não só de Mona como de uma geração, a da Nouvelle Vague…mais do que a vagabundagem ou a inadaptação quer social quer individual (e aqui vem-nos à memória a grande monstruosidade de Truffaut e o seu Les quatre cents coups) parece-me que Varda quer perpetuar no tempo (ou no cinema) toda a rebeldia dos grandes cineastas da nouvelle vague. Talvez seja impressão minha, talvez não, mas o facto é que a similaridade existe e Sans toit ni loi busca no seu todo uma forma de (in)explicar um certo sentido de insurreição contra o mundo ou apenas contra a sociedade. Se Mona vagueia por aquela França rural e invernosa numa busca dum certo sentido ou lugar no mundo que parece não existir ou não coabitar consigo, numa luta interior desenfreada, desorientada e infrutífera onde não podia deixar de haver os caminhos tortuosos do álcool e das drogas leves, parece-me sóbrio e lógico entender que aquela jovem perdida no mundo e no seu caos que lhe faz escolher a ociosidade e a inutilidade vagueia e percorre todo o seu rumo e todo o filme em busca dum nada resultante dum conflito interior perpetuado por uma rebeldia quer geracional quer pessoal…

31 de julho de 2017

Filmes vistos dignos de registo:

(1915) The Pitch o' Chance - Frank Borzage
(1916) The Pilgrim - Frank Borzage
(1916) Nugget Jim's Pardner - Frank Borzage
(1918) Hearts of the World - David Wark Griffith
(1919) True Heart Susie - David Wark Griffith
(1924) America - David Wark Griffith
(1927) Tretya meshchanskaya - Abram Room
(1928) Dom na Trubnoy - Boris Barnet
(1930) Romance Sentimentale - Sergei M. Eisenstein
(1931) El Desastre en Oaxaca - Sergei M. Eisenstein
(1963) America America - Elia Kazan
(1963) Machorka-Muff - Danièle Huillet, Jean-Marie Straub
(2008) Le genou d'Artémide - Jean-Marie Straub
(1929) Tōkyō kōshin-kyoku - Kenji Mizoguchi
(1951) Isabelle aux Dombes - Maurice Pialat
(1953) Congrès eucharistique diocésain - Maurice Pialat
(1957) Drôles de Bobines - Maurice Pialat
(1958) L'Ombre Familiere - Maurice Pialat
(1961) Janine - Maurice Pialat
(1966) La Camargue - Maurice Pialat
(1968) Korotkie Vstrechi - Kira Muratova
(1989) Astenicheskiy Sindrom - Kira Muratova
(1982) Cat People - Paul Schrader
(2016) I Am Not Your Negro - Raoul Peck
(2016) Bacalaureat - Cristian Mungiu
(2016) Voyage à travers le cinéma français - Bertrand Tavernier
(2017) Fátima - João Canijo
(2013) Only Lovers Left Alive - Jim Jarmusch
(2016) Paterson - Jim Jarmusch
(2016) The Lost City of Z - James Gray
(2016) Treblinka - Sérgio Tréfaut

Revisões:

(1927) Wings - William A. Wellman
(1951) A Place in the Sun - George Stevens
(1972) La Cicatrice Interieure - Philippe Garrel
(1990) Die Hard 2 - Renny Harlin
(2007) Youth Without Youth - Francis Ford Coppola

8 de julho de 2017

Os comboios da morte...

Treblinka do Tréfaut é das melhores coisas que vi ultimamente, vive da negrura e da melancolia dos seus planos e enquadramentos para se envolver na desolação, na angústia e no reavivamento das memórias do passado. Tréfaut faz uma viagem (literalmente porque o “caminho” se faz quase sempre ou dentro daquelas carruagens ou no exterior filmando-as) pelas memórias de dois sobreviventes (um homem e uma mulher) desse terrífico e tenebroso campo de extermínio nazi. Os comboios e os seus vagões ou carruagens, nos quais chegam os “condenados” à morte, são o ponto de partida e o veículo de Tréfaut para daí construir o seu filme, é neles que chegam os tais dois sobreviventes como é por eles que chegam todos os outros que, como a dada altura do filme eles dizem, com as suas mortes vão fazendo ou ajudando a sobreviver aqueles judeus que “os ajudam a matar”… a sobrevivência tem destas coisas, alguém tinha de cortar cabelos, alguém tinha de empilhar as roupas e “reunir” o dinheiro e o ouro (extrair os dentes de ouro) e tudo o que fosse de valor para os alemães, alguém tinha de carregar os corpos, incinerá-los… sobrevivência.

Tréfaut parece-me usar a nudez como ligação directa ou duma certa fidelidade de representação visual ao passado e a essas memórias… todos eram despojados dos seus pertences, das suas roupas, todos ficavam sozinhos no seu caminho para a morte… a nudez representativa também da fragilidade e da pequenez do individuo, da humilhação e da submissão… não há maior rebaixamento possível. Treblinka é coisa negra e fria, assim tinha de ser, traz naquelas duas vozes uma tristeza melancólica e resignada, traz além do reavivar de memórias um reviver (ou algo como uma extensão de tudo aquilo que se viveu no holocausto) naquelas duas vozes (uma delas voz-off - a da mulher - representada por Isabel Ruth) daqueles fantasmas do holocausto, o passado a misturar-se com o presente (como todo o filme é uma mistura de ficção e documentário) e por isso os comboios ainda ligam a Rússia e a Ucrânia à Polónia e a Treblinka e tudo isto seja também um olhar e uma metáfora ou um paralelo à actualidade. O(s) olhar(es), tantas vezes reflexivos naquelas janelas das carruagens, são feitos de dor, de sofrimento, de terror… e o reflexo é usado por essa razão, para mostrar o que ficou dos sobreviventes (não são nem nunca poderiam ser as mesmas pessoas, tudo muda para quem passa e consegue sobreviver ao inferno) e, como diz Tréfaut, “o que é viver depois disso”… Treblinka acaba por ser algo muito mais sobre o presente e tudo aquilo que afinal não mudou do que sobre o passado e sobre o holocausto, ele está lá como referência à actualidade e aos erros que continuam a ser repetidos, a indiferença, o olhar para o lado, o não é nada comigo… e por isso Treblinka rejeita sensacionalismos e victimizações, foge de quaisquer floreados ou sentimentalismos gratuitos. Muito bom.


5 de julho de 2017

4 de julho de 2017

Opus 1 de James Gray, realizado quando ele tinha 25 anos e imediatamente merecedor de um prémio de relevo num dos mais importantes festivais do mundo (Leão de Prata em Veneza 94), Little Odessa ganhou com o tempo – talvez as suas qualidades pareçam mais evidentes hoje do que em 1994 – mas também ganha com o conhecimento das cinco longas-metragens que Gray realizou depois dele (The Yards, We Own the Night, Two Lovers, The Immigrant e The Lost City of Z). Porque se percebe melhor – pela repetição e elaboração posterior de temas e motivos já aqui explorados – tudo o que nele é premeditado, idiossincrático, parte de um projecto de cinema “a longo prazo” que não se esgota num filme e passa logo a seguir a ser outra coisa. Se Gray ocupa um lugar especial nalgumas correntes cinéfilas contemporâneas, esta espécie de obstinação, esta consciência de um rasto que se transporta de filme para filme correndo (e querendo correr) o risco da repetição, conta para alguma coisa, para mais na actual paisagem do cinema americano (incluindo o “autorístico”) onde a norma – e a maneira de chamar a atenção – passa pela novidade constante, pela total “mudança” de um filme a outro.

Mas em 1994 Gray já estava a filmar, basicamente, (quase) tudo o que filmou durante os vinte anos seguintes. Um lugar, a zona de Brighton, nos arredores de Nova Iorque, sítio preferencial da imigração russa para os Estados Unidos (e Gray, convém notar, é ele próprio neto de imigrantes russos judeus). As comunidades imigrantes, super-fechadas em si mesmas, sem prejuízo de uma integração razoavelmente pacífica no “american way of life”, com um sentido identitário altamente acirrado, como pequenas bolsas culturais, uma Rússia antiga em “estufa” (aqui em Little Odessa, ver por exemplo a cena do jantar de aniversário da avó, filmada com laivos viscontianos, a dar a ideia de um tempo e de um espaço suspensos na sua própria irrealidade, algo ajudado ao longo de todo o filme pela presença na banda sonora de música coral russa, tanto uma maneira de trazer peso à dramaturgia das emoções como de criar essa articulação – sobrepondo a música a, por exemplo, vistas da paisagem dos subúrbios novaiorquinos). E dentro disto, histórias de tragédias familiares, pais e irmãos desavindos, com todas as ressonâncias (bíblicas, inclusive) que histórias destas sempre favorecem.

É difícil dizer o que é mais bonito em Little Odessa – filme que é todo ele construído entre a beleza e o horror (que se “fundem”, nas impressionantes cenas com Maximilian Schell e Vanessa Redgrave, embrulhados um no outro da mesma maneira que se embrulham a dor física e a dor emocional), e que começa logo por, sem lhe dar mais tempo, confrontar o espectador com a violência mais brutal: a execução sumária cometida por Tim Roth, Joshua, o mais velho dos irmãos Shapira, “hitman” ao serviço da mafia mas tão “clandestino” dentro dessa família como dentro da sua família de sangue (se há tangentes a Coppola em Gray elas virão desta utilização semelhante da equiparação entre a mafia e a família, mais do que influência estrita, embora um filme como The Godfather seja obviamente importante para Gray). Mas o desamparo vulcânico e imprevisível da personagem de Roth é ele mesmo belíssimo, e ele é ao mesmo tempo agente e vítima da tragédia que recai sobre a sua família – como o filme concede, naquele plano final em que o ficamos a ver, e o rosto inexpressivo dele rima a dificuldade do espectador em decidir que tipo de sentimento (repulsa, compaixão, ou qualquer coisa entre os dois termos) lhe votar. Gray contou que naquela cena, filmada nas casas atravancadas e estreitas que são sempre as casas dos filmes de Gray (com alguns planos de mobiliário ou de ângulos baixos a sugerirem que ele viu bem o seu Ozu), em que Joshua e o pai se agridem mutuamente, o veterano actor (que tem longo currículo mas, medindo bem as palavras, raramente foi tão genial como aqui) não tinha sido avisado de que Roth lhe ia bater. Isso dá à cena uma autenticidade brutal e surpreendente, mas também exponencia a violência intrínseca de Joshua e cava a distância entre ele e o espectador –mas depois, pouco à frente, quase dão vontade de chorar as cenas em que ele se despede da mãe, uma Vanessa Redgrave absolutamente sublime.

Também aqui – como no final de We Own the Night – se ouve um irmão a dizer a outro “I love you”. É Reuben (Furlong), o irmão mais novo, que o diz ao irmão mais velho. Little Odessa, no seu coração, é uma história de amor entre dois irmãos, sobre a maneira como cada um olha para o outro, sempre num fio da navalha qualquer (a visita furtiva àquela espécie de “reptilário”, onde a partilha emocional não acaba sem mais uma manifestação do carácter violento de Joshua). E sobre o irmão mais novo, o “cordeiro sacrificial” desta história, tão frágil e tão forte como os adolescentes dos filmes de Nick Ray, a câmara não tem reservas: é ele o nosso condutor, é a ele que o espectador deve amar. E por isso aquele final, entre os lençóis brancos que rimam a muita neve que se vê durante todo o filme, dói tanto.

Luís Miguel Oliveira

5 de junho de 2017

3 de junho de 2017

http://multiplotcinema.com.br/2011/11/o-cinema-de-artavazd-peleshian/

http://unspokencinema.blogspot.pt/2009/08/films-of-artavazd-peleshian.html?m=1

26 de maio de 2017

Filmes vistos ultimamente que interessam registar:

(1918) The Blue Bird - Maurice Tourneur
(1919) Blind Husbands - Erich Von Stroheim
(1923) The Balloonatic - Edward F. Cline, Buster Keaton
(1927) The King of Kings - Cecil B. DeMille
(1939) Union Pacific - Cecil B. DeMille
(1947) Unconquered - Cecil B. DeMille
(1972) Geschichtsunterricht - Danièle Huillet, Jean-Marie Straub
(1975) Moses und Aron - Danièle Huillet, Jean-Marie Straub
(1979) Dalla nube alla resistenza - Danièle Huillet, Jean-Marie Straub
(1982) En rachâchant - Danièle Huillet, Jean-Marie Straub
(1994) Lothringen! - Danièle Huillet, Jean-Marie Straub
(1961) Una vita difficile - Dino Risi
(1962) Il sorpasso - Dino Risi
(1963) I mostri - Dino Risi
(1968) Il profeta - Dino Risi
(1969) Vedo nudo - Dino Risi
(1969) Nell'anno del Signore - Luigi Magni
(1959) Shadows - John Cassavetes
(1961) Too Late Blues - John Cassavetes
(1968) Faces - John Cassavetes
(1970) Husbands - John Cassavetes
(1971) Minnie and Moskowitz - John Cassavetes
(1974) A Woman Under the Influence - John Cassavetes
(1953) The Glenn Miller Story - Anthony Mann
(1960) Le testament d'Orphée, ou ne me demandez pas pourquoi! - Jean Cocteau
(1930) Tōjin Okichi - Kenji Mizoguchi
(1936) Naniwa erejî - Kenji Mizoguchi
(1944) Miyamoto Musashi - Kenji Mizoguchi
(1946) Utamaro o Meguru Gonin no Onna - Kenji Mizoguchi
(1953) Gion Bayashi - Kenji Mizoguchi
(1956) Akasen chitai - Kenji Mizoguchi
(1960) Rokudenashi - Yoshishige Yoshida
(1962) Akitsu onsen - Yoshishige Yoshida
(1968) Juhyô no yoromeki - Yoshishige Yoshida
(1974) Samye zemnye zaboty - Aleksandr Sokurov
(1975) Mariya - Aleksandr Sokurov
(1987) Moskovskaya elegiya - Aleksandr Sokurov
(1988) Dni zatmeniya - Aleksandr Sokurov
(2015) Francofonia - Aleksandr Sokurov
(2016) Austerlitz - Sergei Loznitsa
(2014) P'tit Quinquin - Bruno Dumont
(2016) Ma Loute - Bruno Dumont
(2016) On the Milky Road - Emir Kusturica
(2016) Certain Women - Kelly Reichardt
(2014) National Gallery - Frederick Wiseman
(2015) Boi Neon - Gabriel Mascaro
(2012) Centro Histórico - Aki Kaurismäki, Pedro Costa, Víctor Erice, Manoel de Oliveira

Revisões:

(1923) Safety Last! - Fred C. Newmeyer, Sam Taylor
(1949) The Fountainhead - King Vidor
(1950) Stars in my Crown - Jacques Tourneur
(1959) Rio Bravo - Howard Hawks
(1969) Hello, Dolly! - Gene Kelly
(1985) Year of the Dragon - Michael Cimino
(1997) La vita è bella - Roberto Benigni

23 de maio de 2017

19 de maio de 2017

Rua da Vergonha de Mizoguchi é o derradeiro filme sobre as mulheres… hino à fortaleza ou à força da natureza que são as mulheres… ali há-las de todos os tipos e feitios, estão ali ou vão ali parar por várias razões e objectivos… ali “há de tudo como na feira”! E não, não me parece que tenha havido outro cineasta que tenha filmado tão bem a Mulher, que a tenha explorado até ao seu imo como Mizoguchi fez… como dizia Bénard, que a tenha amado como Mizoguchi… e Rua Da Vergonha ou Akasen chitai é talvez o seu grande “hino” a Elas…

Mas mais uma vez falo de fantasmagoria que percorre o cinema de Mizoguchi… aqui não a há, ou não se vislumbra tão facilmente, pois olhando no fundo do fundo deste filme tão feérico e profundo que é Akasen chitai poderá vislumbrar-se toda essa fantasmagoria na alma daquelas mulheres onde se desvincula o corpóreo do espiritual… essa alma nunca será tocada como tantas vezes o é o corpo… é esta a grande “lição” de Rua da Vergonha, assim como todo o percurso de algumas daquelas prostitutas se deve pela sobrevivência, assim como a escolha e o tal percurso de vida de Yumeko se fez pelo filho para este a desprezar e a “condenar” à loucura… Mizoguchi distancia-se do etéreo para se instalar no corpóreo e em toda a sua materialidade e objecto pecaminoso… a perda da candura e da dignidade… vender o corpo… e Mizoguchi separa-os, o corpo da alma, esta sempre permanece…

Ainda teremos que vincar toda a questão social e política que Akasen chitai revela, o papel da mulher na sociedade, as classes e a sua luta, a miséria a luta pela sobrevivência que a tudo o resto remete… Rua da Vergonha está para Mizoguchi como 7 Women está para Ford, e não há no mundo (ou poucos há no mundo) “coisas” tão homogéneas como as derradeiras obras destes dois mestres... porque se em Mizoguchi se ergue todo o poder feminino em sobreviver (ainda que deambulando) na miséria e na prostituição, em Ford e no seu 7 Women (que diga-se é o filme mais Mizoguchiano de Ford) ergue-se todo esse poder em sobreviver naquelas missionárias e freiras na China dos anos 30…

Forças descomunais, furacões, coisas assombrosas que emanam da alma e se espalham por aqueles corpos (e Akasen chitai é tão erótico quanto negro, tão lúcido quanto idílico) e rostos e pelos caminhos traçados por aquelas mulheres contra o mundo, o corpóreo que transcende do espírito e da alma e da força da mulher… guerra aberta, tão aberta quanto os planos de Mizoguchi...
Monstruosidade total, grandiosidade absoluta.

3 de maio de 2017

Austerlitz do Loznitsa é no fundo uma coisa desconcertante, ainda que não o pareça… e para o espectador comum, ou menos atento, não será fácil descortinar isso, Loznitsa faz algo desconcertante no sentido em que a sua constante procura e “fixação” nas pessoas (os turistas) ao invés dos monumentos, dos locais, do “sítio”, nos mostra o lado obscuro não da história e das atrocidades do holocausto à qual todo o filme está impossibilitado de fugir (ainda que se veja claramente que é esse o propósito de Loznitsa, fugir à história, e por isso sim também lá está essa obscuridade inerente), mas sim do lado obscuro que do turismo e da curiosidade das pessoas advém. A ideia que Austerlitz me deu foi que Loznitsa quer mostrar, naquele “mais um dia” de visitas turísticas a um campo de concentração nazi, alguma coisa obscura ou um sentido caricato/irrisório (ou talvez filosófico) naquela exploração turística de algo tão negro e tão demoníaco como foi o holocausto e como isso interessa e atrai as pessoas… e portanto daí a sua procura incessante nelas… nas pessoas, nos gestos, nos rostos, nos comportamentos, nas reacções, na procura das pessoas em tirar fotos, selfies, em documentar a sua passagem por ali (redes sociais como finalidade provavelmente)… é tudo tão bizarro, estranho, dado o contexto do local… ainda que a espaços nos traga explicações de guias acerca dos locais por onde passam, Austerlitz parece-me essencialmente filme sobre as pessoas e a sua relação com aquilo que se visita e se vê e sobre esse sentido quase que infame ou desonroso quer da exploração turística do local quer da abundante procura das pessoas neste. O resultado é algo simples, fascinante e desconcertante.

30 de abril de 2017

Francofonia é (como de resto já o Arca Russa o era) uma das mais puras manifestações do amor de Sokurov pela arte e pela história… é uma contemplação daquilo que a arte representa no mundo e na história, o elo que os une e toda a extrema importância que isso tem no mundo e no tempo. Francofonia deambula mais pela história e pela sua representação directamente ligada à arte que propriamente pelos corredores do Louvre… coisa que se afasta do Arca Russa onde todo o tempo e todo o espaço era confinado num único plano-sequência pelos corredores e salas do Hermitage. Aqui anda-se mais pelas ruas de Paris, lá no alto a observar a cidade da arte e da cultura mundial, quer em representações do passado quer em imagens do presente… à semelhança do Arca Russa temos figuras históricas (tanto a Marianne da República Francesa e da sua revolução como o Napoléon responsável - entre outras coisas - pela obtenção de muitas das obras de arte que o Louvre alberga) que assombram e deambulam nesta magnífica viagem e homenagem ao museu do Louvre… aliás, Sokurov quer homenagear os museus, “o que sería de nós sem os museus” diz ele a dada altura… Francofonia é amor pela arte, pela pintura e pela escultura, e para isso explora a história, com mais incidência na época da segunda guerra mundial em que quer documentar esse tempo de resistência em que o Louvre sobrevive a uma das maiores ameaças já existentes… traz duas figuras preponderantes nessa preservação e manutenção do museu e das suas relíquias, uma francesa (Jacques Jaujard, director nacional do Louvre e dos museus nacionais) e uma alemã (Franz Wolff-Metternich, o comandante ou responsável pela Kunstschutz - departamento militar nazi da protecção e preservação das obras de arte, museus e monumentos históricos quer franceses quer europeus) e vai representando-as numa mescla de ficção e documental na procura dum sentido quer histórico quer temporal da arte e da sua importância quer no mundo quer nas nossas vidas.
http://ordet1.blogspot.pt/2017/04/arvore-da-cinefilia-4-alvaro-martins.html

25 de abril de 2017

Três filmes de Mizoguchi vistos ultimamente, três assombrações em mim (não é de agora o meu fascínio pelo japonês), A Geisha, Cinco Mulheres à Volta de Utamaro e Miyamoto Musashi, este último pareceu-me o mais fraco. Mizoguchi (e só a Ozu entrego mais apaixonadamente o meu fascínio e o meu “coração”) carrega consigo a tenebrosidade e a ruína da alma humana… a tragédia. Todos os seus filmes percorrem o lado obscuro disso, além de toda a matéria social e de classes, além de toda a comunhão com o naturalismo… Mizoguchi nesse sentido é muito mais espiritualista que Ozu, muito mais ligado ao fantasmagórico, às sombras e a tudo o que elas significam… assombrações permanentes e continuas do espaço e do tempo, a matéria da alma humana e o seu obscurantismo, a forma disso tudo… há em Mizoguchi qualquer coisa tão desmesuradamente tenebrosa que faz com que toda a matéria quer social quer política que se encontra nos seus filmes, transcenda para o imaterial, para o ascético ou tudo aquilo que isso possa representar. A mulher e a sua condição social é realmente o tema incidente e preferido de Mizoguchi, mas o mais profundo em todo o seu cinema é o seu sentido poético, é a tal tenebrosidade, a fantasmagoria e a tragédia (que sim, vem das tragédias gregas) que percorre e inunda o seu cinema, é o conflito interior das suas personagens, as escolhas e o caminho percorrido por elas… é isso tudo que emerge e se transcende numa espiritualidade e num obscurantismo da alma humana. Depois,… depois temos aquilo que Paulo Rocha falava e admirava em Mizoguchi e tanto ele como Pedro Costa tanto foram “beber” para os seus filmes, temos a natureza, temos a sua ligação (do Homem, do japonês principalmente) com o chão (coisa que me parece que Ozu explorou mais e ao qual foi mais “fiel”), um sentido muito forte da natureza com o ser humano…

24 de abril de 2017

21 de abril de 2017

15 de abril de 2017


https://www.publico.pt/2016/05/13/culturaipsilon/noticia/bruno-dumont-comeos-com-ma-loute-1731895

https://www.publico.pt/2017/04/14/culturaipsilon/noticia/homem-tragico-a-correr-para-o-ridiculo-1768662

25 de março de 2017