4 de julho de 2017

Opus 1 de James Gray, realizado quando ele tinha 25 anos e imediatamente merecedor de um prémio de relevo num dos mais importantes festivais do mundo (Leão de Prata em Veneza 94), Little Odessa ganhou com o tempo – talvez as suas qualidades pareçam mais evidentes hoje do que em 1994 – mas também ganha com o conhecimento das cinco longas-metragens que Gray realizou depois dele (The Yards, We Own the Night, Two Lovers, The Immigrant e The Lost City of Z). Porque se percebe melhor – pela repetição e elaboração posterior de temas e motivos já aqui explorados – tudo o que nele é premeditado, idiossincrático, parte de um projecto de cinema “a longo prazo” que não se esgota num filme e passa logo a seguir a ser outra coisa. Se Gray ocupa um lugar especial nalgumas correntes cinéfilas contemporâneas, esta espécie de obstinação, esta consciência de um rasto que se transporta de filme para filme correndo (e querendo correr) o risco da repetição, conta para alguma coisa, para mais na actual paisagem do cinema americano (incluindo o “autorístico”) onde a norma – e a maneira de chamar a atenção – passa pela novidade constante, pela total “mudança” de um filme a outro.

Mas em 1994 Gray já estava a filmar, basicamente, (quase) tudo o que filmou durante os vinte anos seguintes. Um lugar, a zona de Brighton, nos arredores de Nova Iorque, sítio preferencial da imigração russa para os Estados Unidos (e Gray, convém notar, é ele próprio neto de imigrantes russos judeus). As comunidades imigrantes, super-fechadas em si mesmas, sem prejuízo de uma integração razoavelmente pacífica no “american way of life”, com um sentido identitário altamente acirrado, como pequenas bolsas culturais, uma Rússia antiga em “estufa” (aqui em Little Odessa, ver por exemplo a cena do jantar de aniversário da avó, filmada com laivos viscontianos, a dar a ideia de um tempo e de um espaço suspensos na sua própria irrealidade, algo ajudado ao longo de todo o filme pela presença na banda sonora de música coral russa, tanto uma maneira de trazer peso à dramaturgia das emoções como de criar essa articulação – sobrepondo a música a, por exemplo, vistas da paisagem dos subúrbios novaiorquinos). E dentro disto, histórias de tragédias familiares, pais e irmãos desavindos, com todas as ressonâncias (bíblicas, inclusive) que histórias destas sempre favorecem.

É difícil dizer o que é mais bonito em Little Odessa – filme que é todo ele construído entre a beleza e o horror (que se “fundem”, nas impressionantes cenas com Maximilian Schell e Vanessa Redgrave, embrulhados um no outro da mesma maneira que se embrulham a dor física e a dor emocional), e que começa logo por, sem lhe dar mais tempo, confrontar o espectador com a violência mais brutal: a execução sumária cometida por Tim Roth, Joshua, o mais velho dos irmãos Shapira, “hitman” ao serviço da mafia mas tão “clandestino” dentro dessa família como dentro da sua família de sangue (se há tangentes a Coppola em Gray elas virão desta utilização semelhante da equiparação entre a mafia e a família, mais do que influência estrita, embora um filme como The Godfather seja obviamente importante para Gray). Mas o desamparo vulcânico e imprevisível da personagem de Roth é ele mesmo belíssimo, e ele é ao mesmo tempo agente e vítima da tragédia que recai sobre a sua família – como o filme concede, naquele plano final em que o ficamos a ver, e o rosto inexpressivo dele rima a dificuldade do espectador em decidir que tipo de sentimento (repulsa, compaixão, ou qualquer coisa entre os dois termos) lhe votar. Gray contou que naquela cena, filmada nas casas atravancadas e estreitas que são sempre as casas dos filmes de Gray (com alguns planos de mobiliário ou de ângulos baixos a sugerirem que ele viu bem o seu Ozu), em que Joshua e o pai se agridem mutuamente, o veterano actor (que tem longo currículo mas, medindo bem as palavras, raramente foi tão genial como aqui) não tinha sido avisado de que Roth lhe ia bater. Isso dá à cena uma autenticidade brutal e surpreendente, mas também exponencia a violência intrínseca de Joshua e cava a distância entre ele e o espectador –mas depois, pouco à frente, quase dão vontade de chorar as cenas em que ele se despede da mãe, uma Vanessa Redgrave absolutamente sublime.

Também aqui – como no final de We Own the Night – se ouve um irmão a dizer a outro “I love you”. É Reuben (Furlong), o irmão mais novo, que o diz ao irmão mais velho. Little Odessa, no seu coração, é uma história de amor entre dois irmãos, sobre a maneira como cada um olha para o outro, sempre num fio da navalha qualquer (a visita furtiva àquela espécie de “reptilário”, onde a partilha emocional não acaba sem mais uma manifestação do carácter violento de Joshua). E sobre o irmão mais novo, o “cordeiro sacrificial” desta história, tão frágil e tão forte como os adolescentes dos filmes de Nick Ray, a câmara não tem reservas: é ele o nosso condutor, é a ele que o espectador deve amar. E por isso aquele final, entre os lençóis brancos que rimam a muita neve que se vê durante todo o filme, dói tanto.

Luís Miguel Oliveira

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